Rota das Estrelas da Estrela: A Garganta de Loriga

A Garganta de Loriga é, vejo agora, um clássico da Serra da Estrela. Nós, verdinhos nestas andanças, não sabiamos da sua existência. Mas não saber ao que se vai tem o seu quê de magia. A Garganta de Loriga passou a ser um lugar onde vou querer voltar, mas a surpresa da descoberta tornou este dia ainda mais especial. Sabíamos que nos tinham dito que era uma rota bonita e que tinha muita água, caso quisessemos acampar. Não sabiamos das cores, das escarpas, dos reflexos, da paisagem a perder de vista. Mas adianto-me.

A garganta tem início a 1750 m de altitude, perto do Planalto da Torre e é o resultado do deslizamento, há dez mil anos, de um glaciar com mais de 6 km de comprimento e 250 metros de espessura. Na época do glaciar, o gelo deslizava até à altitude de 800m (onde se encontra agora a vila de Loriga), moldando o vale, removendo todo o manto vegetal e deixando a descoberto a superfície do granito sujeita a fracturação, visível nos dias de hoje. A ribeira de Loriga é a linha de água herdada deste glaciar. 

O percurso pela garganta desce abruptamente sete quilómetros com um desnível acumulado de 1.188 metros. Nós, começámos mais acima, na Torre. O sol brilhava e as nuvens eram apenas fiapos no céu. Tinha sido a escolha certa deixar a descida para hoje. 

Apanhámos o trilho das Lagoas da Torre nas traseiras da ferida que é o centro comercial ali montado, junto à capela. À medida que fomos seguindo as mariolas, descendo e contornando para Oeste, fomos esquecendo este pico infeliz, tal era a luminosidade do ar e a beleza do que os olhos alcançavam. O cinzento do cascalho, o amarelo dos pastos e das turfeiras pontuados por aglomerados verdes de zimbro acabavam no granito da Garganta de Loriga para onde nos dirigiamos. Depois disso, o céu e as nuvens acima de todas as terras que nos separavam do Caramulo, que se via no horizonte. 

De sorriso nos lábios fomos seguindo na direcção da garganta. O trilho deixava de estar bem marcado, mas via-se bem a direcção para onde queriamos ir. Foi só uma questão de contornar ou saltar pequenas charcas e zonas alagadas, até chegar a um ribeiro que transpusemos com um pulo de lobo. Do outro lado reapareciam as mariolas e daí para a frente fomos caminhando sempre em cima da pedra, seguindo-as. 

Confesso que já não sei qual era qual, nem a que vi primeiro, mas lembro-me bem de ficar de queixo caído quando começámos a avistar as lagoas que constituem os chamados Poços de Loriga.

São as lagoas do Covão das Quelhas, Serrano e Francelha e estão a aproximadamente 1800 metros de altitude. Integram o Sistema Hidroelétrico da Serra da Estrela que foi construído com o objectivo de regularizar o caudal da Ribeira da Nave, permitindo aumentar a produção de energia hidráulica para alimentação das fábricas de lã existentes em Loriga, e a irrigação dos campos agrícolas do vale.

Fomos saltando de pedra em pedra, quase ofuscados pela fluorescência esverdeada dos líquenes, que mancham o granito liso, a reflectir o sol. Em dias mais frios, tudo isto seria branco. Foi o gelo glaciar e essa neve que já foi perpétua e hoje é apenas sazonal, que poliu a pedra que nos sustentava e deslumbrava. Descendo pelas lajes observávamos as lagoas, remanescentes dos efeitos dessa era glaciar, a reflectir o azul polarizado do céu e o cinzento dos maciços que as circundam. O único som que se escutava era o do vento que neles batia e revolteava, antes de nos refrescar a cara encantada.

Chegados ao Covão do Boeiro apanhámos o estradão que leva à Albufeira do Covão do Meio. Aqui, estávamos já em plena garganta e era bem visível a parede da barragem, que armazena durante parte do ano a água proveniente da ribeira da Nave e dos poços de Loriga. Daqui, a água é conduzida até à Lagoa Comprida por intermédio de um túnel, reforçando o caudal desta albufeira. Durante os meses de verão, o armazenamento deixa de se efectuar, ficando o caudal da ribeira disponível para as populações do vale de Loriga. Do outro lado da parede, por onde descemos por umas escadas, via-se precisamente a pequena cascata que saía na base, deixando fluir a ribeira. Atravessámo-la.

A descida pelo Covão da Nave foi feita primeiro entre pedras e arbustos densos. Ora parávamos a admirar lá em baixo o Covão da Areia, com a sua vegetação amarela e o serpentear da ribeira, ora estávamos voltados para as fragas a zig-zaguear pelo trilho com ramos finos a raspar as pernas e agulhas verdes pelos ombros.

Parámos a comer, encaixados entre dois muros de pedra que protegiam do vento que começava a soprar mais forte. Se olhássemos para trás, víamos a parede da barragem, o aglomerado de calhaus que já tínhamos descido e o contorno da garganta.

Olhando para a frente víamos o Covão da Areia já mais perto, delimitado pelas fragas da garganta. E no horizonte o planalto do distrito de Viseu com o Caramulo ao fundo. Parece uma contradição, mas ali sentia-me ao mesmo tempo envolvida e com a maior das larguezas. Abraçada pela grandiosidade. 

Na descida para o Covão da Areia trememos um bocadinho. A primeira parte é bem inclinada por cima de pedras roladas por onde corriam fios de água que as transformavam em pequenos escorregas. Já não me lembro se chegámos a pôr o rabo no chão e descer tipo aranhiço, mas é provável. O alternar salta pedra, salta riacho, salta pedra, salta charco continuou ao longo de toda a parte plana do covão, que estava alagado bem para fora dos limites visíveis da ribeira.

Entre a água e a erva amarela e verde a brilharem, tudo reflectia a luz que nos inundava a nós também, por dentro e por fora.

Passada esta última depressão, agora já do lado direito da garganta, seguimos as indicações pintadas do trilho, que nos levaram a contornar a parede pelo meio de grandes pedregulhos.

Estávamos já a sair da garganta propriamente dita e a abandonar o percurso da ribeira que caía a pique até Loriga.

A vila já se via, mas ainda tivemos uma boa hora e meia de pedras, carreirinhos na vertente e depois estradão até descalçarmos as botas no aconchego de um quarto fofinho n’O Vicente (e umas três horas mais para enfardarmos o melhor bacalhau com farinheira na história dos bacalhaus).

Já quase a chegar, ao virar de uma esquina na estrada, demos de frente com a ribeira e com a parede do que tínhamos percorrido. Da garganta, lá no topo, já não se percebiam os quatro covões, mas nós sabíamos o que tínhamos visto. Fizemos aí a promessa de voltar, noutras estações.


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2 thoughts on “Rota das Estrelas da Estrela: A Garganta de Loriga

  1. Acabei de comentar, curiosamente, esta história num blogue muito porreiro que sigo há alguns anos!!! Vou repetir-me… excelente aventura, fotos magníficas. Parabéns

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