Sempre tive alguma dificuldade em apreciar convenientemente sítios arqueológicos. Faz-se-me difícil visualizar o que representam aqueles amontoados de pedras, ainda que lhes reconheça a importância. Mas não na Grécia, não com muitos destes lugares monumentais. E isso relaciona-se principalmente com a localização desses sítios: no alto de colinas, no meio de vales, pendurados em encostas de montanhas imponentes. A paisagem natural confere-lhes a imponência que não consigo discernir naturalmente na sugestão das ruínas. O Sítio Arqueológico de Delphi, lugar do famoso oráculo, foi o exemplo perfeito disso.

Reza a lenda que Zeus libertou duas águias, em direcções opostas e estas se encontraram em Delphi, marcando assim o centro do mundo. O lugar foi marcado por uma pedra chamada omphalos (umbigo), que mais tarde foi alojado no Templo de Apolo. Originalmente, segundo o mitologia, o oráculo pertencia a Gaea, a deusa da Terra, e era guardado pelo seu filho Python, a serpente. Apolo matou Python e fundou o seu próprio oráculo no mesmo lugar. Apolo, filho de Zeus, era o deus do sol, da luz e da harmonia.
Esse é o mito. O que se sabe das escavações e da história é que Delphi foi habitada pela primeira vez no final dos tempos micénicos (século XV a.C.) e que sacerdotes de Knossos trouxeram o culto de Apolo para o local no século VII a.C. A sua influência religiosa e política sobre toda a Grécia aumentou no século VI a.C. Foi consultado não só sobre assuntos privados, mas também sobre assuntos de Estado, e as suas declarações influenciaram frequentemente as políticas públicas. Também era consultado sempre que uma colónia era enviada da Grécia propriamente dita, fazendo com que a sua fama se espalhasse por todo o mundo então conhecido. A sua localização estratégica na rota de comércio que atravessava a Grécia de este para oeste também contribuiu para o crescimento do seu interesse.
Peregrinos de todo o lado vinham ao local para consultar o oráculo, que se manifestava através de Pítia, a sacerdotisa de Apolo. Uma vez que era um lugar usado por diferentes – e muitas vezes rivais – estados gregos, Delphi tornou-se não apenas um espaço sagrado, mas também um lugar onde uma cidade-estado poderia exibir o seu status para o grande mundo grego. Quando uma determinada cidade queria ostentar um sucesso na guerra ou no comércio, mandava construir um monumento comemorativo em Delphi. Esta prática levou a uma acumulação surpreendente de monumentos e esculturas, os chamados “tesouros” que se distribuíam na Via Sagrada, o caminho de acesso ao templo. Atenienses, espartanos, macedónios e muitas outras cidades-estado e reinos derramaram as suas riquezas para fazer com que o “umbigo do mundo” reflectisse a sua glória. A cidade também sediou competições de atletismo, poesia e música. Foi o local dos Jogos Píticos, realizados a cada quatro anos, perdendo em importância apenas para os realizados em Olímpia (os Jogos Olímpicos).
Passar de centro do mundo a ruínas soterradas foi efeito da história natural e do homem. Ao longo dos séculos sucederam-se terramotos, guerras entre cidades-estado para controle do oráculo, o domínio (e pilhagem) do Império Romano e, machadada final, a condenação de todas a tradições pagãs pelo Império Bizantino no século IV d.C. O que restava do oráculo foi abandonado e permaneceu debaixo de terra e da povoação que, entretanto, foi fundada sobre ele, até finais do século XIX. O Sítio Arqueológico que hoje se visita, classificado como património da humanidade pela UNESCO, resulta dos esforços de escavação, recuperação e manutenção do governo grego em conjunto com a Escola Francesa de Atenas, um dos 18 institutos arqueológicos estrangeiros presentes no país.
A ideia pré-concebida (errada) que eu tinha de Delphi, era a de ser mais um daqueles lugares a marcar em listas de desejos que alguém um dia fez e toda a gente decidiu copiar. Não ajudava que a maioria da informação que conseguia on-line era de tours de um dia, desde Atenas. Duas horas e meia num autocarro com mais 30 pessoas, para duas horas de visita a um sítio arqueológico, almoço e mais duas horas meia de volta. Não, obrigada. Foi a pesquisar trilhos de caminhada não muito longe de Atenas que, ocasional e felizmente, me dei conta do potencial do lugar. Decidi então adicioná-lo ao percurso pela Grécia que planeava fazer com o Borja, antes da viagem que lidero no país, para a Nomad. Não num ida-e-volta no mesmo dia de Atenas. Esse nunca será o meu estilo de viagem. Seriam dois dias para tirar proveito do Monte Parnassus, incluindo o oráculo. Ou isso achava. A tempestade Daniel trocou-me um pouco os planos, mas não a confirmação que tinha tomado a decisão certa.
Partimos de Atenas no autocarro público que faz a ligação entre as duas cidades, quatro vezes ao dia. Apesar de cinzento, o tempo aguentou-se sem mais que uns chuviscos na viagem. Já estava a receber alertas da protecção civil grega e confesso que ia um pouco apreensiva, mas quando o autocarro começou a subir a montanha e percebi a imponência da paisagem circundante, fiquei só entusiasmada. Após passar Arachova, a vila mais alta, anterior a Delphi, foram uns quantos cotovelos a descer até começar a avistar o vale, na encosta do qual se pendura o Sítio Arqueológico e a cidade, logo a seguir.
Desci do autocarro com o entusiasmo em crescendo. No fundo do vale, encaixado entre altas paredes rochosas, a maior extensão de olival que alguma vez vi fazia o que parecia um rio de copas verdes, até ao mar. Dali, a 600 metros de altitude, rodeado de montanhas, espreitava o golfo de Corinto. Só pensava na parvoíce que teria sido não ter ido e ainda nem tinha visitado nada.


Experimentámos logo as ruas e escadarias empinadas que a topografia da cidade exige, para ir deixar a mochila ao hotel. Eram seis da tarde quando nos dirigimos a um trilho que começava na rua mais alta, e que faz parte da rota europeia de longa distância E4. Estava cheia de vontade de ver o sítio arqueológico e as montanhas circundantes desde o ponto privilegiado que o trilho prometia e comecei logo a trepar pelo ziguezague quase vertical, entre arbustos e rochas. Só que, cumprindo o que o céu já vinha a ameaçar, começou a pingar cada vez mais forte. Continuar, tendo em conta os avisos meteorológicos, seria irresponsável. Demos meia-volta e quando chegámos ao quarto já se ouviam trovões. Fechámos o dia com um jantar delicioso na Taverna Vakhos, aliando na perfeição a qualidade da comida com a vista sobre os telhados de Delphi e o Golfo de Corinto. Gostámos tanto que voltámos no dia seguinte.


O truque para evitar as enchentes dos autocarros que trazem os tours de Atenas é ir de manhã cedo, antes das dez, ou ao fim do dia. Considerando a quantidade de pluviosidade prevista hora a hora e os avisos da tempestade Daniel, optámos pela primeira. O dia estava cinzento e foi pingando esporadicamente, mas conseguimos manter-nos quase secos durante toda a visita. Comprámos o bilhete na entrada, sem filas, e começámos a subir a Via Sagrada, estupefactos com as paredes naturais rochosas que emolduram todo o sítio. Dos muitos “tesouros” que constituíam esta estrada das vaidades, sobram no local apenas as bases dos monumentos que os albergavam.

Estão placas explicativas ao longo do caminho que nos permitem perceber e (tentar) imaginar como seria. Confesso que apenas consegui perceber a dimensão do luxo ao ver uma ilustração do arquitecto francês Albert Tournaire, no Museu Arqueológico de Delphi (ao qual se tem acesso com o bilhete de entrada no sítio arqueológico).

O único tesouro que se encontra de pé, porque foi um dos únicos encontrados num estado de conservação que permitiu a reconstrução, é o Tesouro dos Atenienses, a meio caminho entre a entrada e o Templo de Apolo. As esculturas e tesouros encontrados, que sobreviveram às pilhagens, estão também no museu, mas o edifício em mármore, com colunas dóricas, no seu tamanho original, permite-nos perceber in situ como seriam estes monumentos votivos mandados construir pelas cidades-estado. Aquele, resultou da homenagem de Atenas, após a vitória contra os persas na batalha de Maratona e foi construído entre 510 e 480 a.C. Num dos seus mármores consegue ainda distinguir-se aquela que se crê ser a inscrição mais antiga que se conhece de uma melodia. Corresponde a hinos a Apolo, em que os versos estão escritos no alfabeto jónico, com anotações inscritas para as partituras corais e instrumentais que aparecem sob a forma de caracteres e pontuações.


Do Templo de Apolo, situado no lugar onde, segundo a mitologia, se encontrava o omphalus, restam apenas seis colunas e parte do chão, abaixo do qual, numa pequena cave, a sacerdotisa Pítia se sentava no seu tripé, para receber o oráculo e responder às perguntas colocadas. Estudos recentes sobre a geologia e química do lugar ajudam a explicar o transe em que esta alegadamente entrava por comunicação com o deus Apolo: a libertação de gases de etileno e metano e o ritual e de mastigar folhas de louro previamente. As frases, muitas vezes inteligíveis, que esta balbuciava, eram depois interpretadas pelos padres que a acompanhavam e era a interpretação que era escrita e transmitida ao inquirente. O resultado, como se percebe, era tudo menos claro e aberto a múltiplas interpretações. Pouco mudou nestes milénios no que toca a adivinhações. Talvez porque pouco mudou nestes milénios no que toca à natureza humana.


O caminho, ao longo do sítio arqueológico, é sempre a subir. Os diferentes elementos vão-se dispondo em terraços, conquistados à base do Monte Parnassus. Esta harmonia e a relação com a montanha que o vigia foi um dos critérios para inclusão na lista da UNESCO e foi um dos que mais me conquistou. Chegados ao teatro, aquela meia-lua de bancadas que acompanhava também o declive do terreno destacava-se ao mesmo tempo que parecia fazer parte daquilo tudo desde sempre. Lá do alto, percebia-se bem a dimensão de todo o lugar e a emoção que deviam gerar as peças ali encenadas durante os festivais.

No ponto visitável mais alto chega-se ao estádio. Uma elipse alongada, delineada por filas de bancadas de pedra, dentro das quais se faziam as provas dos Jogos Pítios. Tal como nos Jogos Olímpicos, competia-se apenas pela demonstração de poder, orgulho ou como forma de honrar os deuses. O prémio físico era apenas a coroa de louros, mas os jogos eram também políticos, com os atletas a representar estados ou senhores.
Saímos pela bilheteira justamente quando começavam a descarregar pessoas dos autocarros, às 20 e 30 de cada vez, e fomos espreitar o Tholos do santuário de Atena Pronaica, que fica do outro lado da estrada, mais abaixo na encosta.

O tempo continuava estranhamente calmo, tendo em conta as notícias que começavam a chegar de inundações graves noutras zonas do país. A carga maior para ali estava prevista a partir de meio da tarde. Decidimos que essa seria a altura ideal para estar abrigados no museu, e fomos almoçar. Eram 12.30h. Horas impróprias, para parâmetros gregos, mas não tivemos problemas no restaurante In Delphi (que funciona também como bilheteira dos autocarros).
O Museu Arqueológico de Delphi é um complemento essencial à visita ao sítio arqueológico. Confesso que, geralmente, me farto bastante rápido de museus arqueológicos. Há um limite para a quantidade de pedras e estátuas às quais consigo dar atenção. Mas este tem o tamanho ideal e está organizado de maneira a sentirmos que conta a história do lugar através das peças lá encontradas, sem se tornar muito pesado. Também conta parte dos mitos que explicam a escolha de determinados deuses e heróis nos diferentes templos, tesouros e frisos, o que me manteve ainda mais interessada. Foi por via de uma estátua no museu que aprendi, por exemplo, que se acreditava que Apolo apenas estava presente no lugar durante parte do ano, sendo substituído por Dionísio nos três meses em que se mudava para o Monte Olimpo. Uma espécie de time-sharing divino da premonição.
Quando saímos do museu, já diluviava. Recolhemos ao hotel e passámos o resto da tarde a ouvir a trovoada e a chuva a cair. Não tinha conseguido fazer os trilhos que gostaria, mas estava convicta de ter tomado a decisão certa ao ter ido até ali, com a calma que o lugar merece. Voltámos à Taverna Vakhos para brindar com uma garrafa de tinto Liatiko, de Creta, e mais uma refeição onde o único problema era escolher da carta enorme de pratos com produtos da região. Este foi um dos meus restaurantes preferidos em toda a Grécia e isso é dizer muito, porque ainda está para chegar um em que tenha comido mal. História, estórias, montanhas e boa comida. A combinação certa para uma Filipa feliz.