Os Caminhos de Iruya

De volta das memórias da Argentina, para o livro que quero mesmo acabar de escrever este ano, dei com este texto. A minha amiga Cláudia foi até lá o ano passado e pela descrição dela, continua tudo igual. Esta história tem 15 anos, mas, pelos vistos, podia ter sido ontem. Parecia um lugar perdido no tempo, e por lá continua, nesse limbo sem datas nem horas. O autocarro é o mesmo chaço, a estrada continua de terra, as pessoas continuam a entrar pelo caminho vindas sabe-se lá de onde e continua a valer muito a pena ir até lá, se se virem no norte da Argentina.

Estava com a Vanessa num fim de semana prolongado no norte da Argentina. Nos dias anteriores havíamos andado por Tilcara, Purmamarca e as Salinas Grandes, a descobrir as paisagens rochosas e áridas, tão diferentes do que conhecíamos da Argentina até esse momento.

Montanhas de ocres vários, muitos cactos, as salinas brancas a perder de vista depois de estradas de montanha de mil curvas. O altiplano andino começava por ali. Mas desses dias, recordo com especial carinho a pequena aldeia de Iruya

Estrada para Salinas Grandes

Saímos de Humahuaca às oito da manhã, no único autocarro que faz os 50 quilómetros de distância que as separam. Os nossos amigos argentinos haviam-nos avisado que a viagem de três horas seria atribulada, mas que valeria a pena, e essa era toda a informação que tínhamos. À pergunta “Mas o que é que há para ver?”, só respondiam “Têm de ir!”. Então, fomos.

O autocarro chiava e rangia, as suas e as nossas articulações queixando-se enquanto circulávamos na estrada nacional. Pensei que seria isso a que se referiam ao descrever a viagem como atribulada, mas, ao entrar na estrada de terra trinta minutos depois, percebi que haveria mais que contar dessa aventura. Cinco minutos depois, começaram os espirros. A luz da manhã, filtrada em ângulos vários pelos vidros, começou a reflectir a nuvem de pó que se formara dentro do autocarro. As queixas duraram apenas uns segundos há medida que o terreno começou a mudar. Percorríamos altos planaltos e pequenos vales, ao longo do rio Colanzulí, quase seco nessa época. Os castanhos, vermelhos e cinzentos da Quebrada de Humahuaca iam sendo substituídos por verdes, amarelos e diferentes tons de violeta.

Havia passado uma hora quando o autocarro fez uma curva apertada e a paisagem se abriu à nossa frente. Quase não tínhamos percebido a subida, deslumbradas que vínhamos, mas estávamos já a 4000 metros de altitude, no passo de montanha Abra del Condor. O condutor fez uma paragem de cinco minutos e saímos para esticar as pernas e olhar com espanto para o vale que se espraiava à nossa frente.

O espanto estendeu-se a um arrepio na espinha, ao perceber o que ainda nos faltava. Iruya está a 2780 metros de altitude. Tínhamos muito que descer e a estrada tinha um ar muito mais assustador que até então.

Estrada para Iruya

À medida que as montanhas voltavam a ganhar altura ao nosso lado, a estrada tornava-se mais estreita e encurvada. Cruzámos o rio Iruya várias vezes, também seco. Na época das chuvas, é impossível transitar. O autocarro ia parando para deixar e recolher pessoas na beira da estrada sem que se visse qualquer povoação nas imediações. Enquanto me maravilhava com o desfiladeiro que percorríamos, reflecti sobre como seria a vida nestas condições de isolamento.

Iruya começa a ver-se da estrada, uns minutos antes de se chegar. Parece esculpida num nicho da montanha, as casas em degraus pela encosta e a igreja destacada no topo, com o seu telhado azul.

Iruya, Argentina

A ideia era encontrar um alojamento e ir relaxar para um sítio com uma boa vista, ver a vida passar na aldeia e deixar-nos imbuir da quietude das montanhas. Os dias anteriores haviam sido em ritmo acelerado e sentíamos precisarmos de descanso. Como em quase tudo nessa viagem os planos seguiram em sentido totalmente oposto.

Ao descarregar as mochilas, fomos abordadas por um grupo de cinco argentinos que também haviam vindo no autocarro. Convidaram-nos para nos juntarmos a eles numa caminhada até San Isidro e para ficar na casa de Don Guillermino, onde eles tinham já reservado quartos para eles. Foi tudo tão rápido e espontâneo que, quase sem dar por isso, tínhamos pago os 20 pesos pela noite a Don Guillermino e estávamos a caminhar junto ao rio. Só depois percebemos que seria uma caminhada de mais de quatro horas.

Os nossos companheiros eram caminhantes habituais, equipados com bastões e experiência que eu nem sonhava ainda vir a ter. A sua ajuda foi fundamental para manter os pés secos nas várias travessias do rio.

A última subida até San Isidro parecia interminável, mas as vistas eram magníficas. Várias camadas de montanhas com contornos sobrepostos, subindo do vale que caminháramos.

San isidro, Iruya, Argentina

Mais que o destino, valera a pena o caminho. A cada passo, ficámos também a conhecer melhor aquele grupo que tão entusiasticamente nos acolhera. Dois médicos a fazer a especialidade de anestesiologia, com um dos seus professores de liceu e dois dos mentores da especialidade. Eram, todos, a encarnação do espírito argentino como o lembro. Alegres, carinhosos, sempre a dizer piadas e com uma cultura geral enorme. As conversas fluíram entre a colonização espanhola, cultura europeia, manias argentinas e piadas sobre a maneira como cruzavam os rios, como anestesiavam um paciente ou como abriam as latas de atum. Ninguém se safava de ser gozado e ninguém o levava a mal.

San Isidro era pouco mais que a paisagem circundante. Umas poucas casas que pareciam vazias, não fossem os pedaços de carne a secar ao sol nos jardins, e uma igreja. Ficámos apenas o suficiente para recuperar o fôlego e comer as provisões que os nossos novos amigos tinham levado. Não havia sequer uma pracinha, por isso fizemos o piquenique sentados nos degraus da igreja.

Voltar aparentou ser, inicialmente, mais fácil. O caminho via-se ainda mais bonito, com a luz de fim de tarde a incidir de maneira diferente nas encostas vermelhas e castanhas.

Quando chegámos ao que achei ser o início de Iruya, senti que tínhamos demorado metade do tempo. Era engano. A saída tinha sido toda a descer e com o entusiasmo inicial mal tínhamos dado por ter passado por várias casas à saída da aldeia. O regresso seria todo a subir e ainda faltava bastante.

Por várias vezes achei que nos tínhamos enganado no caminho, tal o tempo que demorámos, e só quando passámos por uma cerca com porcos e cavalos, que tinha notado no sentido oposto, acreditei que estivéssemos no caminho certo.

Estafada, mas com um sentimento de realização que nunca  experienciara apenas por caminhar, chegámos de novo a casa de Don Guillermino. Penso com algum carinho na minha inexperiência nesta altura. Hoje, esta seria uma caminhada trivial para mim. Linda, mas física e tecnicamente trivial. Naquele dia pareceu todo um acontecimento.

Tomámos um duche rápido e saímos em busca de carne. Encontrar um talho aberto a um domingo não foi tarefa fácil, mas, já depois do sol-posto, conseguimos reunir-nos em torno da churrasqueira, no terraço da casa. A temperatura caíra abruptamente e o calor das brasas aproximou-nos e potenciou a conversa. 

Comemos aquele asado já em jeito de despedida. O nosso autocarro saía às seis da manhã. Eles iriam apenas à hora de almoço, por isso já não nos cruzaríamos no dia seguinte. Deitámo-nos com promessas de reencontro se nós alguma vez fôssemos a Jujuy ou quando eles fossem a Córdoba. Nunca chegou a acontecer, mas, no momento, foram promessas sentidas.

Ainda era de noite quando o autocarro arrancou. Como adormeci durante essa primeira e pior parte da viagem, não foi tão assustadora como me lembrava. A única memória que retenho desse regresso é o sorriso tranquilo ao abrir os olhos para o nascer do sol violeta e laranja, quando passávamos de novo por Abra del Condor.

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