Chegar a Bundi foi o que são quase sempre os trajectos não pré-programados na Índia. Tudo certo no final, algum sofrimento nos entretantos. Na tentativa de minimizar os imprevistos, tinha procurado online as empresas de autocarros que para ali vão desde Jaipur, onde estava. Uma delas tinha uma bilheteira marcada no Google Maps e críticas razoáveis. Só que a “bilheteira” era uma banquinha no passeio, difícil de encontrar, que até tinha um computador, mas vendia os bilhetes à mão. Daí levaram-me até ao autocarro que estava do lado oposto da estrada, de onde saíam todos. Saiu antes da hora prevista e deu-me a sensação que era só o primeiro autocarro que ia na direcção certa, e não aquele específico para o qual tinha comprado bilhete (e que seria supostamente melhor). Demorou mais de uma hora só para sair de Jaipur, enquanto dava voltas para meter cada vez mais gente. Seriam quatro horas de caminho, foram seis, e quase me deixaram pendurada a metade, quando tive de percorrer meia aldeia à procura de uma casa de banho, na única paragem que demorou mais de 5 minutos.
O autocarro não entrava em Bundi, deixou-me só na saída da autoestrada mais próxima. Felizmente, já se alinhavam tuk-tuks no cruzamento. O que me trouxe, era o tuk-tuk mais podre onde já andei. Chapa amolgada, estofos a desfazer-se, amortecedores inexistentes, mas o condutor, que não falava uma palavra de inglês, foi amoroso. Ao ver o meu entusiasmo quando, após conduzir uns 20 minutos, nos aproximámos do lago e se começou a ver o palácio, parou para que pudesse fotografar, feliz com a minha felicidade.

A história de Bundi está intimamente ligada com a ascensão e queda de vários Rajput (clãs guerreiros hindus) no Rajastão. É uma confusão de nomes, famílias, intrigas e guerras palacianas ao longo de séculos. (Muito) resumidamente, a história da região remonta a 1193, quando os Hada Rajputs, um ramo importante dos Chauhan Agnikula Rajputs, se estabeleceram no terreno montanhoso de Mewar. Em 1241, Rao Deva Singh, da tribo Meena, conquistou Bundi, abrindo caminho para o estabelecimento do reino de Hadaoti. O nome Bundi parece ser derivado de “Bando Naal”, que significa uma passagem estreita entre colinas acidentadas e foi sendo cobiçado por Hadas e Meenas ao longo de várias gerações.
Os governantes de Bundi, chamados Raos, tornaram-se aliados próximos do império Mugal em 1569, travando batalhas ferozes em seu nome em várias regiões da Índia e sacrificando príncipes e chefes do clã Hada. Em troca, várias gerações de Raos receberam o apoio e terras dos Mugal, sendo alguns nomeados governadores de Delhi e de Varanasi. Além das batalhas pelo império Mugal, estavam continuamente em guerra com os Maharanas (Rajputs de Mewar) e, mais tarde, com o reino de Amber, que repetidamente tentou anexar os territórios de Bundi.
Em 1818 Rao Bishan Singh assinou um tratado com a Companhia das Índias Orientais e o reino tornou-se um dos principados do Raj Britânico. O seu filho, Raja Ram Singh, desfrutou dos melhores anos no trono. Governando por quase sete décadas, sob a alçada dos britânicos, viu a economia crescer e Bundi tornar-se um reino próspero. Os seus sucessores mantiveram a “aliança” com os britânicos, lutando do seu lado em várias guerras locais contras os Marathas e nas duas guerras mundiais. Em 1948, após a independência da Índia, Bundi tornou-se parte do estado do Rajastão e a sua realeza perdeu muitos dos “direitos” reais, que haviam mantido sob os britânicos. A decadência dos edifícios reais acelerou-se nesta altura, mas as muitas guerras e intrigas anteriores também haviam deixado as suas marcas.

Fazendo juz ao nome, a cidade espalha-se por um vale, flanqueado pelas montanhas Aravelli e rodeado de árvores de fruto, rios e lagos artificiais. A primeira coisa que me chamou a atenção, quando a comecei a ver ao longe, foi a quantidade de verde e a maneira como as casas, coloridas, se destacavam da colina. Essa é a zona antiga, na sombra do palácio e do forte de Taragarh, que reflectem no lago Nawal Sagar, a imagem com que Bundi me recebeu. Foi aí que fiquei, no Haveli Bundi Inn, um dos muitos pequenos hotéis feitos nos antigos haveli, quase escondidos nas ruelas estreitas. Recomendo.
Como cheguei já quase ao pôr-do-sol, fui rapidamente dar uma volta em direcção ao lago. Ainda sem grande orientação e com muito pouca definição no Google Maps, meti-me por ruas que curvavam sobre si, passavam por baixo de arcos (que aprendi depois serem os antigos portões da cidade), contornavam muros altos e que desembocaram num bairro de casas pequenas com chão de terra. Depois de alguma apreensão inicial, reparei que estava um grupo de crianças a bater bolas com um taco de críquete. Perguntei se o lago era por ali. Disseram-me que sim, mas não me deixaram ir embora enquanto não fiz figuras tristes a tentar jogar também.


Pouco depois, cheguei à margem do lago e contornei-o pelo passeio que o rodeia. Enquanto o sol desaparecia, as luzes do palácio acendiam e eu caminhava embevecida. Jantei no terraço do hotel, onde um senhor que acumulava funções de recepcionista, homem de limpezas e cozinheiro fazia maravilhas num cubículo com um bico a gás, um frigorífico e uma bancada, sempre com um sorriso. De frente para o palácio iluminado, brindei para mim mesma com uma cerveja gelada, estupidamente feliz por ter chegado ali.

A zona “dentro de portas” de Bundi, que se espalha na colina do palácio, tem duas ruas principais. Na base, Sadar Baazar, a rua comercial, segue mais ou menos a direito desde o lago, de este para oeste, até desembocar na muralha e na porta Chauhan junto ao mercado de Bartan e aos famosos poços (stepwells) de Bundi.

Mais alta, está a rua Suraj Pole, que faz um C, contornando a colina e virando para norte até sair também numa arcada que já foi uma porta da muralha. Junta-se ali à estrada Ramdwara, que segue para norte entre as montanhas Aravelli. Entre as duas há ruas e ruelas que sobem e descem, becos apertados, casas que quase se tocam, num labirinto típico da distribuição das cidades medievais. A maioria das casas está pintada de azul, uma característica tão bonita como prática, destinada a mantê-las mais frescas no verão escaldante do Rajastão.


Em muitas paredes há também murais coloridos que tanto são anúncios de lojas e hotéis como decoração da entrada das casas e templos. A influência da arte de pintar em miniaturas, típica do Rajastão e com uma escola específica de Bundi, sai das paredes dos palácios e dos ateliers formais para as paredes da cidade, com os motivos naturais típicos desta escola muito presentes.




Acordei cedo e deixei-me perder pelo labirinto, admirando as paredes e a vida da rua. De volta à Sadar Bazaar e a precisar de pequeno-almoço, parei numa banquinha em frente à estrada onde uma senhora me chamava efusivamente. Chamava-se Sawariya, e o seu restaurante também.
Sentou-me numa cadeira de plástico em frente a uma palete coberta com uma toalha, que servia de mesa e perguntou-me o que queria comer. Quando vi que fazia idli, um dos meus pequenos-almoços preferidos (típico do sul da Índia), não resisti a pedir, e ela fez tudo fresquinho na hora. Primeiro um chai maravilhoso, com todas as especiarias moídas no momento.


Enquanto o bebia, ouvi-a no interior do cubículo, que era a cozinha e “sala de refeições” interior, a cortar e cozinhar vegetais para fazer o sambal e o molho de côco. Entretanto, passou o homem do leite, com as bilhas penduradas na bicicleta. Deixou o leite e também bebeu um chai. O vizinho da loja do lado parou para dizer olá, e beber um chai. Passaram três vacas na estrada e outros tantos tuk-tuks. Chegou o filho de Saawariya com sacos de vegetais, e também bebeu um chai. Enquanto os idli coziam na panela de vapor, fotografei a dupla orgulhosa, a pedido deles. Depois, lambuzei os dedos com aqueles bolinhos de arroz e lentilhas, empapados no sâmbal e no molho de côco.

Segui dali em direcção aos poços/tanques atravessando o mercado e a porta da cidade muralhada Chauhan. Existem vários (perto de 50, dizem) destes reservatórios rodeados de escadarias (stepwells) e os primeiros dois que vi quase passam despercebidos no meio do bulício das ruas. Só mesmo quando estamos em cima deles é que se abrem à nossa frente. Nagar Sagar Kund, um conjunto de dois stepwells idênticos separados por uma rua, é dos mais simples arquitectonicamente, mas a localização e o livre acesso tornam-nos muito interessantes. Construídos para fornecer água durante os tempos de fome, já são pouco utilizados como reservatório, servindo mais como ponto de encontro ou atracção turística. Naquele dia, estavam quatro senhoras a varrer as escadarias e a conversar. Mais a conversar.


Um pouco mais adiante situa-se outro stepwell, Rani Ki Ji Baori. Rani significa rainha em hindi, e um baori é um stepwell. O nome tem então duplo significado: foi construído por uma rainha e, devido ao seu tamanho, escopo e arte, é “A Rainha dos Stepwells”. Foi construído em 1699 a mando de Rani Nathavati Ji, a rainha mais jovem de Rao Raja Anirudh Singh, governante de Bundi. Rani Nathavati Ji era a sua segunda esposa e a primeira não tinha sido capaz de lhe dar um herdeiro. Após dar à luz, Rani Nathavati Ji foi deixada de lado pela ciumenta primeira esposa, que se apropriou também da criança. Devotou então as suas energias a projetos públicos e construção de stepwells, e Rani Ki Ji Baori é o mais famoso e mais comprido de Bundi. É uma estrutura de vários andares, com 46 metros de profundidade, coberta de entalhes intrincados e soberbamente executados. Para entrar há-que pagar 50 rupias (0,80€). Lá dentro, a temperatura baixou automaticamente e não havia ninguém. Contornei as varandas, subi e desci os vários degraus e admirei os elefantes e os muitos detalhes talhados na pedra.


Um quilómetro, algum pó e muitas casas encavalitadas depois, cheguei a Dabhai Kund, o maior tanque. A grande maioria dos stepwells em Bundi apresenta um altar ao deus Ganesha e um altar à deusa Sarawasti, em lados opostos. Se nos outros isto não era evidente, naquele estavam ambos em lugares de destaque, um numa plataforma, o outro numa varanda à qual não dava para aceder. O Dabai Khund tem a forma de uma pirâmide invertida e está localizado numa espécie de parque, rodeado de árvores. Quando lá cheguei, não havia ninguém e o silêncio e a sombra das árvores fizeram-me senti-lo mais como um templo ou algo reverencial, que apenas um poço.



Depois do almoço, caminhei 2 quilómetros para norte, pela Suraj Pole, entre bairros residenciais, e depois pela estrada, até chegar ao lago Jait Sagar. Levava-me lá a expectativa de um lugar sossegado e rodeado de natureza e o palácio de verão da realeza de Bundi, Sukh Mahal, que tinha servido de residência a Rudyard Kipling enquanto este escreveu a novela “Kim”.

O palácio é pequeno e, com excepção de uma sala vazia, apenas com algumas fotografias de Kipling, está fechado. Podemos caminhar em torno do edifício, que está mesmo em cima do lago e ladeado por ghats (degraus) e por um jardim. Foi o que fiz, deixando-me ficar num dos degraus mais afastados a admirar um guarda-rios distraído em cima de um tronco de árvore que saía da água.


Queria ter caminhado mais em torno do lago, apreciar melhor as montanhas circundantes, mas o calor era demasiado e não havia caminho resguardado, apenas a beira da estrada. Teria sido um bom plano para fazer de tuk-tuk, por exemplo. Fica a dica.
Esperei pela luz e temperatura do fim de tarde para subir e visitar o palácio, cujo exterior me continuava a deixar boquiaberta. É uma pena que o interior esteja tão pouco mantido. Apenas algumas salas com apenas algumas pinturas que deixam imaginar o luxo e a imponência. As guerras, a genealogia complicada e a inacção das autoridades arqueológicas fazem com que não se chegue a acordo sobre quem é o verdadeiro dono e quem deve ser responsabilizado pela manutenção. Os problemas de partilhas também afectam a realeza rajputana.
O palácio são vários palácios, só alguns (mais ou menos) mantidos e visitáveis. As partes restantes estão tomadas pelos macacos e morcegos. Como muitos dos palácios do Rajastão, está localizado numa colina e rodeado e protegido por muralhas, fazendo dele um palácio-fortaleza. Para chegar às portas principais, há que subir, ziguezagueando pela estrada de pedra que vai acompanhando os vários níveis de muralha.

Chega-se então à porta Hathi Pole, encimada por duas estátuas de elefantes, que se destacam de colunas encimadas por pavilhões octogonais (chhatri), com a pedra trabalhada em arcos e padrões geométricos e vestígios do que terão sido pinturas de cores exuberantes.

Este era o acesso ao palácio Garh, o palácio principal em torno do qual os outros foram sendo construídos ao longo de três séculos. Encaixados na colina, parecem peças de lego harmoniosamente empilhadas para se destacarem e, ao mesmo tempo, se enquadrarem nesta. Fui circulando ao sabor da vontade, subindo e descendo escadas apertadas, entrando e saindo de salas e corredores que se conectam, fazendo um labirinto que permitia aos príncipes e princesas escapar em caso de perigo.

Alternando entre o deslumbre e a pena pelo abandono, percorri o palácio Chhatr, com um jardim cuidado e a sala, vedada com um corrimão, com as pinturas mais mantidas de todo o palácio. Chitrashala é um sonho em tons de azul, com cenas da mitologia Hindu e da vida na corte a cobrir as paredes e tecto.



No Badal Mahal, o Palácio das Nuvens, foi só deslumbre. Vistas desafogadas para os telhados da cidade, o lago e as duas colinas que os enquadram, e as pinturas, de inspiração chinesa, a cobrir as paredes e tecto em tons de vermelho.




Descendo de volta à entrada, passei por um pátio que imaginei, nos seus tempos áureos, fervilhante de vida. Rodeado pelas arcadas em ponta dos pisos inferiores, as escadarias exteriores, as janelas cobertas pelas treliças em pedra que eram recato e ar-condicionado e uma enorme estrutura com dois pilares, que segurava um sino gigante, o Jhoola Chowk, em pedra amarela, é hoje um pátio que resguarda apenas quartos caídos, paredes desabadas, chão coberto de dejectos de morcegos. E, no entanto, sente-se-lhe as histórias de princesas e aias no seu dia-a-dia de vida comum e intrigas palacianas.

Fui com a ideia de continuar a subir a colina, para o forte de Taragarh. Acompanhando a muralha, a estrada de pedra desaparece, o trilho empina e as árvores começam a tomar conta do caminho. Construído no século XIV, é um dos fortes mais antigos do Rajastão, mas o que resta hoje em dia é muito pouco. Tinha lido sobre o abandono, mas que o que restava valia a pena explorar. Ruínas tomadas pela natureza são sempre um fascínio. Mas também me tinham avisado que ali era terreno totalmente tomado pelos macacos. À medida que fui subindo, eles foram aparecendo e, ainda que não se mostrassem agressivos, não quis arriscar problemas, quando era a única pessoa por ali. Admirei a vista de cima da muralha e dei meia volta antes de chegar ao forte.

A vista era realmente impressionante. Bundi espalhava-se, os lagos reflectiam, só se viam as cores, nada do lixo que cobre o chão. À distância é sempre tudo mais bonito.
Sou injusta. Gostei muito de Bundi e caminhar nas suas ruelas também foi muito bonito, apesar da atenção constante aos cocós de vaca gigantes. Há-as por todo o lado. Nos meus passeios matinais, vi-as à porta das casas, esperando comida. Algumas espreitavam para os pátios através das portas abertas, meio dentro, meio fora, ruminando. Pareciam vizinhas à espera daquela chávena de sal emprestada.


As pessoas andavam na sua vida. Fora da rua principal, onde se ouve o costumeiro “Where you from?”, “Here my shop!”, “Hello ma’am!”, “How are you?”, não ligam a quem passa, o que foi um alívio depois de Jaipur. Mas reagiam a um sorriso com outro, desarmante. Principalmente as mulheres. Sempre as mulheres, a salvar a minha saturação da Índia.
Pensei muito nisso, e na minha primeira viagem à Índia, naquele carro com a Lauren e a Reda. No dia seguinte, depois de um dia relaxado junto ao lago, enquanto esperava pelo comboio nocturno para Delhi escrevi: “Só achamos que é difícil ser mulher a viajar na Índia porque não somos mulheres a viver na Índia. Para elas, sim, é difícil. Mas são elas que nos mostram o carinho, a calma. Que nos cuidam. Que nos desarmam com estes sorrisos tímidos”. À minha frente, na estação quase vazia, estava um casal. A senhora, de pernas cruzadas em cima do banco, com a ponta do sari a cobrir a cabeça, olhava-me enquanto eu escrevinhava no meu caderno. Quando os nossos olhos se cruzaram fez-me um sorriso maroto e aquele abanar de cabeça que é “nim”. Sorri-lhe de volta e fui para a plataforma. Bundi tratou-me bem.