Esta coisa de escrever em Português e em Inglês, em alturas diferentes e para viagens diferentes torna-se um pouco esquizofrénica. A coisa sai-me naturalmente, e creio que, por isso, o vou continuar a fazer, mas às vezes sinto que deixo a lingua mãe desfalcada. Assim, enquanto pensava se fazia sentido fazer um round-up of 2014 in travel decidi mandar isso tudo às urtigas, e pensar em vez nos momentos que me me vêm à memória, quando penso no ano que passou, em Português.

Não é um resumo, e poderão nem ser os momentos mais importantes dessas viagens (ou dos meses em que fiquei só por Lisboa. Foram poucos, mas existiram). É o que me vem à cabeça, quando penso nestes meses. É um exercicio engraçado. Experimentem.

 

Janeiro

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Estou a sair da livraria City Lights, em São Francisco. Já é de noite. Perdi a noção das horas no meio dos livros, e arrefeceu. Tenho as mãos frias, um sorriso nos lábios e a companhia de Ginsberg, Kerouac, S. Burroughs e Ferlinghetti.

Apanho um autocarro para a estação de comboios e mando mensagem ao Romulo a avisar que me atrasei. San Jose ainda está a uma hora de caminho, mas já sei que me espera um jantar quente e horas de conversa…e tenho um saco cheio de letras.

No autocarro ouço falar Chinês, Espanhol e Brasileiro. O motorista pragueja em Inglês, de vez em quando. Abro o “San Francisco Poems”, do Lawrence Ferlinghetti. Este é o homem responsável pela publicação de “Howl”, que também vem no meu saco, e de tantos outros clássicos da geração Beat. Estão todos lá, na livraria que também é editora, com um andar só para eles. E mais dois para tudo o resto. Como não perder noção do tempo.

 

Fevereiro

Somos três raparigas a cantar “Eu tô ficando velha, eu tô ficando louca”. O concerto de Mallu Magalhães não impressiona e enquanto nos juntamos antes, a comer falafel , e depois, a queimar o céu da boca com pasteis de belém a escaldar, ainda não sabemos que seremos três amigas em menos de um fósforo. As conversas, quando nos fazem bem, são como as cerejas, atrás de uma vem logo outra.

Juntou-nos a escrita e as viagens. O resto veio tudo a partir daqui…porque fomos três raparigas a cantar “Em cada canto eu vejo o lado bom”.

 

Março

Caminhamos pelas ruas estreitas de Pamplona. Este é o caminho do encierro, na altura das festas de San Fermin. Hoje nem touros nem multidões. Muita gente, mesmo assim. É domingo e todos estamos de passeio, ou só de pintxos y cañas. É o meu ultimo dias, destes cinco que me trouxeram ao Norte de Espanha, a visitar amigos que não via há 5 anos.

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Javier é incansável no seu conhecimento e na vontade de o partilhar. Enquanto caminhamos descansados, conduzidos por ele, vai-me contando a história destes lugares, como tem feito em todos onde me tem levado. É o marido de Ana, a minha amiga e é com eles que tenho ficado. Jon, o outro amigo, juntou-se a nós hoje, depois de termos estado na sua terra, Vitória-Gasteiz, ontem. Entrecortando a informação passada por Javi, conversamos sobre tudo: lembramos episódios engraçados de quando nos conhecemos em Helsínquia, há 8 anos, falamos de planos futuros e frustrações passadas, dizemos disparates, discutimos política e cascamos na religião. Sinto-me viajante e em casa ao mesmo tempo.

 

Abril

Quando acordamos já o Matteo andou a esconder cestos da Páscoa. Estamos em Budapeste, mas o que interessa hoje é que nos reunimos com os ex-companheiros de casa de Lisboa que não víamos há 3 meses. Por isso, este é um brunch especial, num domingo especial. Há 2 mesas corridas  juntas. A Kat, como sempre, não descurou a decoração.

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Seremos uns 15, de nacionalidades várias. Nós, que viemos visitar, e todos os outros amigos que cá estão. Há comida à bruta, e buscas de ovos e cestos cheios de chocolates.

Já foram os dias de explorar a cidade e passar horas de molho a conversar dento de águas termais. Hoje comemos, falamos, atropelamo-nos na despensa, na busca do último cesto e jogamos jogos que nos fazem rir até às lágrimas. Lá fora chuvisca, como a convidar a que não nos mexamos daqui.

 

Maio

O Sena, à nossa frente, adquire tonalidades douradas à medida que o sol vai baixando. Estamos sentados lado a lado, com as pernas a balançar na sua direcção. Estão dois copos meio cheios ao nosso lado, mais uma garrafa de vinho tinto vazia. O álcool e o simples facto de estarmos a viver este momento contribuem para que se soltem os pensamentos, e as palavras. Falamos da vida, dos planos individuais futuros, do passado longínquo, partilhado por pouco tempo e de modo tão diferente, mas que permitiu que estivéssemos hoje, aqui…e da improbabilidade de isso ter acontecido.

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De vez em quando olhamos para trás, como para garantir que ela ainda lá está. E como de todas as vezes, a Torre Eiffel exerce o seu fascinio e ficamos calados a contemplá-la. Eu, que a vi pela primeira vez este fim de semana, ele, que vive com vista para ela.

O sol já se escondeu atrás dos prédio, na outra margem. Sopra uma aragem fria. Ele põe-me o braço por cima do ombro e eu aconchego-me. Amanhã volto à realidade. Hoje ainda é Paris.

 

Junho

Eu devia estar fechada em casa a estudar Medicina Chinesa. Devia. Em vez disso, é sábado e estou a comer sardinhas assadas, a dançar o “apita o comboio” e  a beber imperiais.

Eu devia estar fechada em casa a estudar Medicina Chinesa. Devia. Em vez disso, é segunda e estou a comer sardinhas assadas, a dançar o “apita o comboio” e  a beber imperiais.

Eu devia estar fechada em casa a estudar Medicina Chinesa. Devia. Em vez disso, é quarta e estou a cheirar a sardinhas assadas, a dançar o “apita o comboio” e  a beber imperiais.

Eu devia sair só um bocadinho, só porque é noite de Santo António, porque devia mesmo era estar fechada em casa a estudar Medicina Chinesa. Em vez disso estou a dançar até às 4 da manhã, a beber ginginhas e a conversar até às 7.

Julho

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Fiquei a saber tantos factos que ignorava. Demasiadas informações para reter agora, mas que vão aqui ficar, num cantinho da memória e ajudar-me a juntar mais peças no puzzle da História, que tenho ainda tão desmontado.

E os Alemães sabem-nas, também. Todas, antes e depois da guerra, das guerras, dos horrores. Discutem-nas, mantém a memória viva, ainda que se envergonhem dela. Porque é a única maneira de prestar homenagem, parece-me.

Os memoriais cumprem esse objectivo, também. E há-os pela cidade, mais simples ou elaborados, todos muito bem pensados. A Torre do Holocausto, com o seu vazio opressor. O Memorial às Vitimas da Guerra e Tirania, estátua de mãe e filho morto expostos às intempéries, como a humanidade. O Memorial aos Judeus Mortos da Europa, um jardim de colunas cinzentas, lápides/corredores no meio dos quais a cidade pára e se vê apenas o céu. As prateleira vazias do Memorial à Queima de Livros de 1933, que espreitamos de uma abertura no chão, no local onde aconteceu.  Placas no chão, com o nome de tantos desaparecidos no último sitio onde foram vistos e muitos, muitos outros.

Lembrar para não repetir. Seremos capazes, como povo, como humanos, de fazer isso? Olhando para o mundo de hoje diria que não. Olhando para Berlim sinto esperança.

Agosto

Este acampamento onde partilhamos comida e  ideias, e a que chamamos Pátio da Fruta Fresca, porque sim.

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Este acampamento onde me deito agora a olhar o céu através das árvores,  a pensar na sorte que tenho por ter estas pessoas a cruzar o meu caminho.

Este acampamento que é tão mais que o espaço físico que  ocupa. Que somos todos, aqui e nas noites longas de hidromel. Aqui e nos mergulhos na barragem. Aqui e nas sestas. Aqui e nos braços dados em Círculos Circassianos, em Scottishes, em Polkas, em Andros, em Hunter Dros, em Valsas, em Mazurcas e em todas as outras danças do Andanças, que não sabemos, mas inventamos.

Aqui e na energia de uma Fanfarra afinada, de uma Tarantela louca. Aqui e nos silêncios partilhados, quando a música diz tudo.

 

Setembro

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 Santiago de Compostela – Muxia. 120 km andados; duas bolhas sob controle. Muita paisagem metida olhos dentro: bosques verdes do chão ao tecto, planaltos pintados de amarelo e lilás, plantações de milho até ao horizonte. Pinheiros, Castanheiros, Pereiras, Eucaliptos. Falésias, praias de mar verde transparente, praias de mar castanho de algas, praias de mar cinzento revolto. Névoa que esconde a Lua, Lua gigante que passa a névoa, névoa que esconde o nascer do Sol. Nascer do Sol sem névoa, azul e lilás, vermelho e rosa e laranja. Terra castanha, pedregulhos, cascalho, algum asfalto. Cheiro a nevoeiro, a noite, a terra molhada, a vacas e galinhas, a maresia. Demasiado pulpo, demasiado pão, demasiados fritos. Estrellas Galicias e Ribeiros na conta certa. Mexilhões perfeitos cozinhados por um Pirata. Palavras certas na altura certa, palavras parvas na altura certa, silêncios necessários. E gargalhadas, muitas gargalhadas a ecoar Galiza fora. Buen Camino!

 

 Outubro

 

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Está uma autocaravana parada à beira Tejo. Jantamos lá dentro. Ouve-se o rio e pouco mais. Somos quatro. Comemos, falamos e rimos sem conseguir parar. Doi-me a barriga e as bochechas, de felicidade.

Está uma autocaravana parada à beira Tejo. O sol está a nascer. Eu estou dentro dela. Volto a dormir.

Está uma autocaravana parada à beira Tejo. São oito da manhã. Está uma mesa montada cá fora. O sol bate-nos na cara e cheira a maresia. Comemos ovos. Estou a 1 kilómetro de casa, mas noutro mundo.

 

Novembro

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Caminhar com os “Portugueses em Viagem” é saber que o deslumbre acontece pelo mundo, como aqui, na nossa costa. Que a viagem é um estado de espírito constante que leva à descoberta de cada momento, independentemente da geografia.

É, enquanto se fazem 40 kilómetros, de Almograve a Odeceixe, falar do Irão, da China, da Argentina, como quem fala na novela do dia anterior.

É sentires-te  estimulado na vontade de seguir os sonhos. Sentir que isso será não só possível, mas apoiado.

É encontrar o António, que é Chileno e que o Nuno conheceu na Islândia, na Zambujeira do Mar há hora de jantar…e isso ser normal.

 

Dezembro

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Em Lisboa há tempestade de granizo. Eu, estou numa praia deserta. Estão 30 graus.

Chegámos a Yiti atravessando as montanhas que se vêm a rodear Muscat. Sobe-se, desce-se e chegamos a um desfiladeiro que é, ou já foi, curso de água, e vem dar ao mar. Passamos de deserto rochoso a palmeiras do meio da montanha. No fim da estrada, a praia.

Há casas quase na areia, mas não se vê ninguém. Hoje é Domingo, dia de trabalho. Então, hoje estamos tranquilas, só observadas pelos pássaros e as montanhas.

Seguindo de Yiti para sul, só baías de água verde, no meio de montanhas: Bandar Khayran Reserve.

Azul céu, montanhas beje, amarelo e castanho, areia ocre e água azul e verde transparente. Contrastes. Curvas. Sorrisos. Fotos. Aldeias com duas ou três casas e uma mesquita. Brancos e bejes.

Oman finalmente me dá o que esperava.

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Foi um grande ano por tantas razões. Podem perceber melhor ainda o quão especial aqui

 

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