Costumava dizer que odiava rotinas. Associava a repetição dos dias, das tarefas, dos lugares a essa palavra. Rotina:
1. Caminho já trilhado ou sabido. = ROTINEIRA
2. Prática constante, em geral. = COSTUME, ROTINEIRA
3. Hábito de fazer uma coisa sempre do mesmo modo. = ROTINEIRA
4. Índole conservadora ou oposta ao progresso. = CONSERVADORISMO ≠ INOVAÇÃO
5. Sequência de instruções ou de etapas na realização de uma tarefa ou actividade.
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Algumas das coisas que me entusiasmam nas viagens são o movimento e a constante descoberta de paisagens, pessoas, costumes novos. Sair desse caminho já trilhado por mim, progredir, fazer coisas diferentes, de maneira diferente. O oposto da definição de rotina.
Depois de quase 2 meses em constante movimento dei por mim a pensar se afinal em vez de a odiar, sentiria falta de alguma. É que, apesar de ser estimulante a sensação de chegar a um sitio novo, não conhecer ninguém, entender como funcionam os transportes, como se movimentam as pessoas, o que comem, o que fazem, ao fim de um tempo, cansa. Ter de me apresentar todos os dias, contar a mesma história, tentar explicar o que sou,o que faço e porque o faço (quando muitas vezes nem eu sei bem), farta.
Ontem, enquanto subia a carrera 27 desde a escola de salsa até ao hostel num caminho que já faço de olhos fechados, dei por mim a agradecer por esta rotina que tenho em Cali.
Sabe bem ser recebida pelo recepcionista da escola com um beijo e um “Hola Filipa, como estás?” Sabe bem ser animada pelos professores com um “muito bem” Português com sotaque espanhol de cada vez que consigo ultrapassar aquele passinho que me estava a frustrar.
Sabe bem saber quais as funções que tenho de cumprir no meu turno no hostel e que entre recolher o pequeno almoço, passar revista às áreas comuns, fazer inventários, abrir a porta ou fazer check-ins posso ler o meu livro, e/ou escrever, e/ou beber café e/ou cerveja e conversar durante horas com pessoas que já me vão conhecendo.
Sabe bem saber os horários da biblioteca se quero escrever mais tranquila, e sabe bem às vezes não conseguir escrever no pátio do hostel porque o José me quer contar o que acabou de lhe acontecer, ou o Duran me desafia para ir caminhar até ao Cristo, ou a Kara aumenta o volume da música porque aquela salsa “es bueníssima”, e acabamos todos a discutir a música que não temos ouvido por aqui.
Sabe bem que o segurança do edifício que passo no caminho do supermercado me sorria com umas “Buenas Noches” de reconhecimento, e que a menina da caixa já saiba que não preciso de sacos de plástico. Sabe bem não ter de olhar para mapas a toda a hora.
Sabe bem saber que apesar do calor do dia, a noite de Cali sempre traz uma brisa que levanta saias e refresca, sem fazer frio.
Enquanto batia o café instantâneo para lhe criar alguma espuma, numa rotina que partilho com o José, dei-me conta que não é a rotina que odeio. É a monotonia, é o aborrecimento de tarefas que não me preencham, é a possibilidade de que se tornem vitalícias.
As rotinas existem em tudo e nem todas têm a mesma conotação. Há rotinas que me permitem o conhecimento e o reconhecimento. Permitem-me relaxar. Há pequenas rotinas que me definem um pouco: a maneira como armo a mochila, a maneira como organizo as coisas no autocarro da noite para ter o livro, a música, a almofada e a camisola à mão para me distrair e dormir bem sem ter de incomodar ninguém, a maneira como desço sempre do quarto para o meu turno com o livro, o caderno e o telemóvel numa mão e me sento no sofá do pátio a beber o café, a maneira como planeio os próximos destinos e trajectos das viagens, a maneira como escolho vendedores diferentes para produtos diferentes nos mercados. Há (ou devia haver) rotinas que me permitem melhorar: dançar mais, escrever mais, ler mais.
Há rotinas e rotinas, e percebi que, ao contrário de as odiar, me eram essenciais, em viagens longas. Daí a importância de viajar devagar. Ter tempo para criar essas rotinas que não só me tornam parte dos lugares que visito, como me permitem relaxar, poder deixar a saída de hoje à noite, o teatro de amanhã, a visita àquela rua, àquele museu, para um dia em esteja menos cansada, porque não há pressa, e ainda vou estar por aqui daqui a uma semana. Posso aproveitar melhor os momentos que acontecem expontâneamente, sem ter medo de estar a perder alguma outra coisa.
Ter esse tempo permite-me construir lares provisórios em diferentes paisagens, reconhecer-me e ser reconhecida em diferentes lugares, criar rotinas que fogem da tal rotina que me assustava.
(Para quem se pergunta se este tempo de que falo não aumenta os custos das viagens, a resposta é: não. Muito pelo contrário. Este trabalho no hostel, por exemplo, permite-me não pagar alojamento e ter uma cozinha à disposição para evitar restaurantes. Para além de me agradar este conceito de trocar serviços em vez de dinheiro, dá-me competências e conhecimentos que nunca me tinham ocorrido. Podem saber mais sobre a aplicação deste tipo de conceitos às viagens neste artigo que escrevi para o Alma de Viajante)
Certíssimo. Eu diria até que quanto mais devagar viajas menos dinheiro gastas.
Beijo grande e força nessas “rotinas” 🙂
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🙂 Obrigada Filipe!
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Beijinho Filipa. Leio saudades mas entrelinhas?
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Beijinhos Fernanda. Há saudades, mas não estão nestas entrelinhas 🙂
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