Hoje foi um dia tramado

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“Hoje foi um dia tramado. O nosso carro também ficou ali. Mas estamos todos aqui, juntos. O Andanças é este lugar especial onde não há classes e não há raças e todos estamos aqui e damos tudo“ diz Zé Quesada, dos Velha Gaiteira ao fim de algumas músicas. Falha-lhe a voz. Estiveram quase para não tocar. A carga emocional era grande e não sabiam se teriam força. Foram encorajados por outros músicos. As pessoas precisavam disto, e eles também. O poder da sua música teve esse outro poder, o de exorcizar a energia que pesava em todos. Não se resolveram os problemas, como não se teriam resolvido se não tivessem tocado, mas renasceu, não das cinzas mas do pó levantado pela dança, o espírito do festival.

Muito se poderá dizer sobre o que podia ter sido feito para evitar este incêndio. As respostas tardarão a chegar, se alguma vez se tiverem certezas. Muitas vozes se levantaram contra a decisão de continuar o festival. É duro lidar com a perda de um carro e as emoções estavam ainda a quente. Mas, como não continuar o festival? Como terminá-lo com essa energia negativa que não o representa?

É claro que a situação tem de ser analisada. É claro que há que apurar responsabilidades e perceber se as coisas deviam, ou podiam ter sido feitas de outra maneira.  E isso será feito, pondo um esforço maior na organização para que o festival continue ao mesmo tempo. Mas, como disse também o Zé “este festival é um festival feito de pessoas para pessoas e tem esses valores lindos. Tem que continuar. É nas bases que nós mudamos o mundo. Levem isso daqui. Mudamos cada um de nós, depois levamos isso para casa, mudamos em casa e daí para a frente. Siga a festa que com esta festa mudamos o mundo.” Eles deixaram tudo no palco e nós deixámos tudo no chão e algo se sanou naquele momento. As pessoas que são eles deram-nos a energia para que as pessoas que somos nós a pudéssemos retribuir e dizer-lhes, com os pés “Ainda bem que aqui estão. Estamos juntos.”

A maior parte dos carros que arderam foi de músicos, professores, dançarinos e voluntários. As pessoas que fazem o festival, sem receber nada em troca. E são a maioria dessas pessoas que continuam aqui, a falar com a polícia, com a organização, com os seus seguros, a tentar perceber o que vai acontecer, e a ensinar, a tocar e a trabalhar ao mesmo tempo. Não tinham de o fazer. Isso diz tudo.

 

(A propósito do incêndio que deflagrou ontem no parque de estacionamento do Festival Andanças, onde sou voluntária, que queimou mais de 400 carros. Eu tive a sorte de estar próxima na altura em que tudo começou e conseguir sair rapidamente na autocaravana para a aldeia mais próxima, esperar aí por novidades e voltar mais tarde, quando tudo estava já controlado. Quem estava no recinto e teve de ser evacuado a pé não poupa elogios à maneira como essa evacuação foi feita. Mas tenho lido também muitas mensagens muito duras relativamente ao incêndio em si, e à decisão de seguir com o festival. A primeira é difícil de gerir neste momento, a quente e quando ainda não se sabe muito, a segunda é a razão porque fiz este texto.)

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