Cheguei a pé, de Lisboa ao Festival Andanças. A pergunta recorrente, quando anunciei que caminharia até lá: Porquê?
Cheguei a pé porque esse ritmo agrada-me. Porque quis que o meu corpo sentisse a distância. Que as minhas pernas, mais ou menos doridas, os meus pés, com mais ou menos bolhas, pisassem o chão 266282 vezes ao longo de 200km percorridos em 8 dias.
É sempre relativo. Mesmo a caminhar, os ritmos, as velocidades são diferentes, mas esse desacelerar, esse sentir lentamente as mudanças na paisagem, nos dias, nas noites, relaciona-se com o desacelerar que procuro na vida. Nas viagens, no trabalho, nas refeições, na partilha com os outros. Criar tempo, torná-lo mais longo, preenchê-lo.
É óbvio que não quero andar para todo o lado. Nem seria viável, com a vida às costas e no outro lado do mundo, por onde tenho estado. Mas sempre que seja possível, que se ganhe com isso, este desacelerar. Por isso ir de barco, por isso apanhar autocarros, por isso andar.
Caminhar permitiu ir vendo as mudanças da lua, dia a dia, enquanto nos aproximávamos do destino. Primeiro um holofote prata que nos iluminava o trilho. Gradualmente um pequena linha curva, um fio de luz rodeado de milhões de estrelas. Permitiu adivinhar a silhueta das árvores a contra-luz da lua: às vezes galos, às vezes coelhos, às vezes só árvores, lindas.
Permitiu ver o céu a mudar de côr com o dia a nascer, primeiro azul mais claro, depois amarelo, rosa, laranja, azul céu. Não porque estamos nesse sítio a determinada hora, mas durante o nosso próprio movimento, que respeita esse movimento do dia a começar. Permitiu atravessar aldeias de noite, cheias apenas da luz amarela dos candeeiros, e não perturbar esse silêncio. Vivê-lo.
Permitiu escutar os sons da noite – os sapos e as cigarras, os nossos passos na terra batida, o vento nas árvores, uma coruja, cães que ladram à nossa passagem, a água a correr nos riachos – e os da madrugada – vacas que mugem, dois cavalos atrás de uma cerca que galopam à nossa frente, esperam, relincham e seguem, as asas de pássaros que despertam. Permitiu sentir os cheiros do caminho: a humidade, a figueiras, a orvalho, a cebola selvagem, a terra molhada, a pó, a erva, a pocilga, a bosta de vaca, a pão a cozer, a alcatrão quente, a fruta madura…
Permitiu um contacto com as pessoas que não acontece de outra maneira. A curiosidade e o espanto provocam interacções que não se conseguem de carro. Primeiro porque o mais certo é nem se passar por estes lugares, depois porque as pessoas nos encaram de maneira diferente. Foram vários os acenos e “bons dias” de passagem, os “mas vêm a andar desde onde meninos?”. Foi o senhor da mercearia que nos ofereceu a fruta que íamos comprar “Não é com duas bananas e duas maçãs que eu fico mais rico e os meninos precisam de força”, e a senhora do café que ofereceu arroz e meloa à Sara, porque ela não comia nada do que eles vendiam – caracóis e ameijoas, especialidades e pratos únicos do único café em Monte da Pedra. Foram as cedencias de ginásios, escolas, espaços das juntas de freguesia para que tivéssemos onde dormir.
Cheguei a pé porque quis que a minha mente fosse chegando ao festival devagar, em vez de aterrar lá, no primeiro dia. Os meus pés chegaram passado uma semana, mas o pensamento já ia chegando desde o primeiro passo.
Cheguei a pé porque quis testar os meus limites, e ultrapassá-los. Perceber que o meu corpo é uma máquina maravilhosa, e a minha mente muito mais forte do que pensava. Ao quarto dia, não aguentei as dores das bolhas nos pés e apanhei boleia. Tive medo de, se insistisse, não conseguir completar as últimas etapas. Depois, nos dois últimos dias, a cabeça venceu. Apesar das bolhas, apesar do calor, apesar da dor na anca que parecia querer sair do sitio, apesar das pernas parecerem que não davam mais, foram dando. Respirei fundo, muito fundo e segui. Cheguei de rastos, mas cheguei.
Cheguei a pé, para depois dançar: Andei para o Andanças.