Em meados de Junho fui, a convite do Turismo do Centro, fazer uma blog trip de três dias pela Beira Baixa, com cinco outros bloggers da ABVP. Muitos dos lugares por onde passámos não me eram desconhecidos. Já atravessei esta zona de sul para norte, de carro este ano e de caravana em 2018, e de norte para sul, de bicicleta em 2019. Sempre com paragens no caminho. Mas desta vez pude ficar a conhecer com mais detalhe muita da história e descobrir recantos que me tinham passado ao lado noutras visitas.
Não gosto de roteiros. Não acho que, passeadores profissionais ou não, tenhamos autoridade para afirmar que determinada direcção é “a melhor”, recomendar umas actividades em vez de outras, fazer-nos arautos do conhecimento dos melhores sítios para comer/dormir/andar/beber/mergulhar/baloiçar/pedalar/conduzir/fotografar. Para tal devem estar as pessoas dos próprios lugares. Além disso, aborrece-me escrever roteiros. Mas gosto de histórias. Gosto de contar os pormenores que me chamaram à atenção nos sítios por onde passei, explanar nos detalhes da paisagem, nas conversas com as pessoas. Mais que dar dicas, gosto de transportar os leitores para determinados momentos.

Isto não é um roteiro pela Beira Baixa. É um conjunto de recordações destas diferentes viagens. Espero que sirvam de inspiração para que construam os vossos próprios roteiros e criem, como eu, boas memórias. Faltam muitos lugares onde só passei de raspão, mas quero voltar para conhecer melhor, faltam aquelas paisagens que nos surpreendem numa curva da estrada e que são melhor vividas que contadas. Vão até lá surpreender-se também.
Idanha-a-Velha
A primeira vez que aqui estive foi há 12 anos. Com um grupo de amigos, viemos explorar a terra de uma de nós, o Orvalho, e os arredores. Dessa visita, lembro-me apenas que a aldeia estava enfeitada para as festas e de termos tirado uma foto ao lado da Sé, cada um em cima de uma pedra.

Não sabia ainda que cada uma dessas pedras conta histórias que atravessam séculos. Milénios até. Nem o soube com tanto detalhe nas passagens posteriores. Já me tinha sentado à sombra daquela amoreira centenária a recuperar as pernas da pedalada, mas só este ano, à mesa da chef Maria é que percebi a dimensão da importância passada desta aldeia que já foi metrópole. Mas já contei essa história aqui.
Monsanto
Foi só ao terceiro regresso que descobri que o que já lhe chamara como metáfora, era afinal uma definição geológica correcta. Monte-ilha, mais usado em alemão, Inselberg, é um relevo que emerge bruscamente de uma superfície de aplanação. São chamados “montes-ilha” por serem montanhas e colinas que se destacam abruptamente das planuras que os rodeiam, como se fossem ilhas no mar. O inselberg granítico de Monsanto emerge da Superfície de Aplanação de Castelo Branco, constituída essencialmente por xistos e grauvaques, e eleva-se mais de 300 metros, atingindo os 758 metros no topo. Do topo da muralha do castelo, olhando para o horizonte, a sensação é mesmo a de ter um mar em distintos tons de verde aos pés. Pensar que, há milhões de anos, era um “mar a sério”, reduz-nos à nossa insignificância no tempo da Terra.

Nesta última visita, passei por Monsanto com uma geóloga do Geopark Naturtejo, onde toda esta região se insere. Foi com ela que aprendi esta designação e muitos outros pormenores. Esta herança parece-me muito mais interessante que a denominação de “Aldeia mais portuguesa de Portugal”, dada pelo Secretariado Nacional de Propaganda, em pleno Estado Novo. Nunca fui de nacionalismos e nunca gostei de concursos e classificações. Mas gostei de Monsanto desde a primeira visita, apodos à parte. Lembro-me bem, naquela primeira visita com amigos, de subir as ruas empinadas, do calor e preguiça que nos atacaram após o almoço, encostados às paredes salientes, que são também pedras do monte, do restaurante Petiscos e Granitos. Nessa altura, ainda não sabia que estes granitos enormes, arredondados, se chamam barrocas e que ao amontoado caótico desses enormes blocos se chama popularmente barrocal, enquanto os geocientistas o apelidam de Caos de Blocos. Monsanto é rico neste caos disperso e em blocos que formam paredes e tectos das casas. Nesse dia, limitámo-nos a brincar a fingir que segurávamos esses pedregulhos encaixados e salientes, no meio das ruas apertadas. Também recordo o deslumbre ao ver os telhados encavalitados na encosta e uns sobre os outros, laranja das telhas sobre o cinzento do granito, enquanto o vento nos despenteava no cimo das muralhas, no ponto mais alto da “ilha”.

Estas vistas e o pitoresco da aldeia valem a visita por si. Na volta de caravana, com o Borja, que aqui tinha passado sozinho de bicicleta anos antes, decidimos vir matar saudades, olhar de cima a terra que vínhamos percorrendo e beber um hidromel na Taverna Lusitana. Escrevi nesse dia “O silêncio a perder de vista”. Mas saber um pouco mais da história, geológica e não só, como aconteceu na última visita com a geóloga Joana, aguçou-me ainda mais a curiosidade e a vontade de voltar em distintas estações. O trabalho da equipa do Geoparque não se limita ao estudo e divulgação da geologia. Passa também por integrá-lo na história e cultura das aldeias, que a Joana nos contou com entusiasmo. Quero, por exemplo, passar por aqui em Maio, para ver as Festas de Santa Cruz que celebram a história de um cerco a Monsanto, que se pensa ser uma cristianização de lendas pagãs. Os invasores, romanos, mouros ou castelhanos, consoante a versão, fizeram um cerco que se prolongava havia sete longos anos, fazendo com que os alimentos no interior das muralhas escasseassem. Quando restava apenas uma vitela magra e um alqueire de trigo, uma das mulheres sugeriu que, para iludir o inimigo, alimentassem a última vitela com o último trigo e, numa festa, a lançassem sobre os sitiantes. Lançaram a vaca das muralhas e ao embater contra as rochas, espalhou-se o trigo que tinha no ventre. Ao ver isto, o inimigo pensou que os habitantes ainda tinham muitos alimentos e encontravam-se protegidos pela providência divina, levantaram o cerco e abandonaram a região. O episódio é atribuído a um dia 3 de Maio, coincidindo com o dia da Santa Cruz, que assinala a descoberta da Cruz de Cristo, a Vera Cruz, por Santa Helena. Todos os anos nessa altura, as mulheres vestem-se a preceito e, ao som de adufes e de canções populares, agitando marafonas e transportando potes de flores à cabeça, partem da povoação em direção ao castelo. Chegadas ao alto das muralhas, lançam para o exterior os potes brancos, simbolizando a vitela, revivendo, desta forma, o episódio do fim do cerco e a salvação de Monsanto.
Penha Garcia
A primeira vez que fui a Penha Garcia foi nessa viagem com amigos. Lembro-me de pouco. Foi o último lugar onde parámos, já cansados. Vimos a aldeia e fomos até ao miradouro, admirar o vale, as linhas das pedras e a albufeira ao fundo. De certeza que nos falaram dos fósseis, mas não tenho memória nenhuma. Ainda bem que voltei mais vezes, porque se tornou uma das minhas paragens preferidas.
Com o Borja, caminhei a PR3 “Rota dos Fósseis”. Confesso a minha ignorância do momento. Julgava que os fósseis eram dos animais e não icnofósseis, ou seja, vestígios ou marcas deixadas pela actividade dos seres vivos passados. Recordo dessa caminhada o maior fascínio pela maneira como as paredes de pedra fazem riscas verticais e oblíquas, que parecem apontar para o fundo do vale.

Na verdade, se apontam, é para cima, na direcção de onde se levantaram ao ser comprimidas há milhões de anos. As rochas de Penha Garcia contam a história da abertura e do fecho do Oceano Rheic. Neste derradeiro período deu-se a deformação das rochas sedimentares e sua recristalização (metamorfismo), com o levantamento de uma cordilheira à escala do continente que entretanto se formava, a Pangeia. Estas riscas verticais que dão a impressionante textura ao canhão do rio Pônsul neste lugar são estas camadas quartzíticas levantadas a pique, que foram fundos oceânicos horizontais.

Os animais primitivos deixavam o seu rasto nas moles areias do fundo do oceano. A cristalização e transformação dessas areias em rocha quartzítica permitiu que esse trajecto ficasse desenhado e chegasse aos nossos dias, centenas de milhões de anos depois. São as “cobras pintadas” nas pedras, que as gentes locais conheciam há anos, às quais atribuíam lendas e propriedades mágicas e que, antes de se formar o geoparque, já tentavam proteger da destruição e roubos.

Aprendi com a Joana que foi precisamente a vontade conjunta dos locais e de entidades oficiais de preservar os icnofósseis de Penha Garcia que despoletou a criação do Geopark Naturtejo, o primeiro geoparque classificado pela Unesco em Portugal. Segundo o paleontólogo Adolf Seilacher, em nenhum outro local estes icnofósseis se encontram tão bem expostos, tão bem preservados e são tão diversificados, como em Penha Garcia. Visto que o conceito de geoparque implica um território suficiente para a criação de sinergias económicas foi necessário abarcar uma área maior do que Penha Garcia, tendo assim surgido o projecto com os actuais 6 municípios que compõem o Geopark Naturtejo, num território com 4624 km².

Mas nem só de memórias de milhões de anos vive esta garganta. Dispersas pelo vale e lá em baixo junto ao rio, que é agora um regato, contido pela barragem que também domina a paisagem, estão várias casinhas de pedra. Eram antigos moinhos de rodízio e as respectivas casas dos moleiros. Eram mais de 20, onde a água no canhão fluvial apertado tinha um papel fundamental na moagem da farinha dos cereais plantados no Vale do Pônsul. Hoje, estão recuperadas quatro. Uma com um moinho que funciona ainda, duas com objectos do quotidiano deixados para trás e a “Casa dos Fósseis”, uma pequena exposição pedagógica sobre a Era Paleozóica e os seres mais ilustres desses tempos, as trilobites. O Sr. Domingos, cuidador destes pequenos museus, veio chamar-nos a que as fôssemos conhecer. Saltando de pedra em pedra, ao longo do trilho, do alto dos seus 70 anos mais ágeis que vários de nós, abriu-nos as portas das casas e as comportas da água, fazendo girar a mó que tocava um sino.

Nesta última visita, terminámos a caminhada da melhor maneira. Sentados à sombra das árvores, espalhados pelas rochas, entre pequenas quedas de água do Ponsul, vigiados pelas enormes paredes, abrimos os nossos piqueniques da Geocakes e almoçámos embalados pelo cantar dos pássaros e da água.

Albufeira da barragem Marechal Carmona
“Só podemos mesmo estar agradecidos pela possibilidade de explorar. Sempre. Nas curvas da estrada, como nas da vida, fazemos o melhor com o que aparece. Esse é o nosso poder. E se, chegados à possibilidade de lugar de pernoita, a albufeira se mostra assim, com o sol a brindar ao caminho e Monsanto a brilhar ao fundo, assentamos arraiais. A liberdade de escolha da casa móvel é o melhor presente que temos, no presente que é hoje.”

Foi assim que descrevi a nossa chegada às margens da albufeira, depois de um dia de chuva que não nos tinha deixado explorar tanto como queríamos. Ali dormimos, na caravana, acordando com o nascer do sol, a água um enorme reflector àquela hora dourada.

No ano seguinte, enquanto pedalávamos para sul, decidimos vir pernoitar ao Parque de Campismo Municipal de Idanha-a-Nova, que fica também muito perto da albufeira. Foi uma tarde atribulada, mas que, por isso mesmo, redobrou o prazer da aproximação. O céu ficava cor-de-rosa, a água parecia chumbo e as margens eram obras de arte a contraluz. Vínhamos de Meimoa e paráramos em Penamacor a almoçar. Daí seguimos em direcção a Idanha-a-Velha. Que prazer pedalar pela GR22. Larga e suave, sem pedras nem buracos. Acho que nunca gostei tanto de pedalar num trilho como naquele troço até à base de Monsanto, com os campos a brilhar da chuva recente.

Já no início da GR12, a caminho de Idanha-a-Velha, que emoção ir entre os muros de pedra. O Borja ia nas sete quintas, e eu tenho de confessar que também. Até a árvore caída a obstruir a passagem e ultrapassá-la teve a sua graça. Tinha começado o dia com as pernas pesadas e pouca vontade e até me esqueci disso. Mas depois começaram a aparecer os portões fechados e as vacas no caminho.

Depois de Idanha, fomos em linha recta em direcção à albufeira, achando que a podíamos contornar nos trilhos junto à água, até ao parque de campismo. As indicações nos mapas não eram claras quanto à possibilidade de atravessar o terreno que pertence ao Festival Boom, em alturas em que não há festival. Descobrimos que é impossível. Tudo vedado e um grande portão onde ninguém atendeu à campainha. Toca de reorganizar a rota, para não ter de voltar tudo para trás, mas seguir em direcção à estrada. Fomos entrando e saindo de trilhos agrícolas abertos onde perdemos a conta às entradas/saídas à prova de vaca e demos de frente com uma manada de dezenas que não nos atrevemos a cruzar. Fofinhas, fofinhas, mas aqueles cornos metem respeito. Toca de repensar o trilho para voltar à estrada com o mínimo de recuo, mas sem saber das condições dos portões e dos possíveis animais. E o sol a cair, e o trilho a subir e as minhas pernas a gritar e uma vaca isolada mais assustada que nós, mas que nos pregou um susto daqueles. A luz estava linda, vimos dois corços e, noutras condições, aquilo seria tudo espectacular. Mas eu sentia que não dava muito mais, que não sabíamos se íamos ter de retroceder de qualquer maneira, redobrando quilómetros, e bufava. Já me estava a ver a acampar mesmo ali. Vacas ou não vacas. Quando finalmente chegámos à estrada, “só” faltavam 15 km para o campismo. A cada subida pensava que não aguentava mais, e depois aguentava. E ainda consegui apreciar as cores do céu a escurecer e o espelho que era a água, quando finalmente chegámos à barragem.

Deu para tudo, aquele dia. Como dão tantos dias na Beira Baixa.
Orvalho: Cascata da Fraga de Água Alta e Miradouro do Mosqueiro
O Orvalho, para mim, sempre foi “a terra da Mariana”. A tal amiga que nos levou em grupo a conhecer a zona, há 12 anos e onde tínhamos estado para o seu casamento, no ano anterior. É sinónimo de bem receber, amizade e brincadeiras, ainda que confunda o que fizemos de cada vez e me lembrasse muito pouco da aldeia em si, até ter voltado duas vezes consecutivas este ano. Quando subi ao miradouro do Mosqueiro, de carro com o Borja, em Maio, para fazer um piquenique de almoço e ver as vistas que tínhamos descortinado ser boas no mapa, não sabia que estava a voltar onde já me tinha rido muito. O que descobri agora ter-se tornado numa das grandes atracções da zona, era aquele lugar onde, numa dessas visitas anteriores, nos tínhamos colocado nos carrinhos e comboio de madeira em miniatura a fazer fotografias parvas.

Foi apenas quando vi o tal comboio que associei a memória ao sítio. Não me lembrava das vistas panorâmicas impressionantes sobre toda a região, com as serras da Estrela, Açor e Lousã como horizonte e o Zêzere a serpentear lá em baixo.

O miradouro foi requalificado nos últimos anos, com uns passadiços gigantescos encosta acima, que fazem parte da Georota do Orvalho, mas também com alguns terraços plantados com espécies nativas. Está mais bonito e é realmente um bom poiso para um piquenique. Os brinquedos, esses mantêm-se iguais e ainda bem.
Nesse mesmo dia, em Maio, já tínhamos passado pela Cascata da Fraga de Água Alta. Aproximámo-nos pelo estradão empinado que desce da estrada, após estacionar o carro um pouco mais à frente dos passadiços. Estava um dia de sol sem nuvens e demos de frente com o recorte cinzento da fraga contra o céu azul, a água a cair em força pela fenda na grande poça verde cá em baixo. Não estávamos preparados para banhos, mas ainda me descalcei e molhei os pés, refrescando-me com o spray que se libertava da força da água a cair. Subimos pelo mesmo trilho depois de rodear a cascata e aproveitar a sombra das árvores para melhor apreciar a paisagem.
Em Junho, durante a blog trip, descemos e subimos pelas escadarias dos passadiços que se encontram mesmo ao lado da cascata. Em conversa com o vereador da câmara de Oleiros, fiquei a saber que o que existe de passadiços no restante Trilho da Georota do Orvalho, foram recuperações de pontes e passagens antigas, já existentes e muito difíceis de fazer de outra maneira. Foi apenas uma renovação, quando se desenhou e recuperou o trilho, o que me parece legítimo e louvável. A Georota vai da aldeia ao Miradouro do Mosqueiro, combinando a passagem pelos geomonumentos classificados pela UNESCO que existem na freguesia de Orvalho, como é a fraga que dá nome à cascata, com a paisagem mais agrícola e humanizada. Seguindo essa rota, existia maneira de chegar à cascata pelo trilho, ou, chegando de carro pela estrada, usando o estradão que eu descera em Maio, o que, na minha opinião, torna aqueles 230 degraus, em ziguezague na encosta a pique, desnecessários, como o são a maioria dos passadiços que têm surgido nos últimos anos por todo o país.

Opiniões contraditórias à parte, a cascata é uma das mais bonitas que já vi em Portugal e a reabilitação do espaço circundante tornou-a mais apetecível não só para os visitantes pontuais, mas para passeios e banhos também para os habitantes ao longo da ribeira e poças e isso é de louvar.
Vila Velha de Ródão
Aqui começa a Beira Baixa. Ou acaba, se viermos de norte. Principio ou fim, boas-vindas ou despedidas, qualquer destes designios serve bem esse braço de ferro entre o Tejo e o monte que são as Portas do Ródão.

Estas portas são a formação geológica resultante da interseção do duro relevo quartzítico da serra das Talhadas com o curso do rio Tejo. O nome vem das paredes escarpadas, com 170 m, fazendo lembrar duas “portas”, uma a norte, no concelho de Vila Velha de Ródão e outra no de Nisa, que provocam um impressionante estreitamento no curso do Tejo. O início deste encaixe do rio, provocado por erosão, remonta a cerca de 2,5 milhões de anos atrás e decorreu em várias etapas.
Incrível pensar que, em determinado altura, o que percorremos de barco durante a blog trip era uma cascata intransponível. De carro e bicicleta, em ambas as direcções, já tinha atravessado a ponte, que fica de frente para esta geomonumento, parando a admirá-lo. Também já atravessara a rocha, num túnel do comboio da belíssima Linha da Beira Baixa, que faz grande parte do seu percurso junto ao rio Tejo até Vila Velha de Ródão, onde se afasta. Poder sentir de perto a imponência das escarpas que servem de poiso a muitas aves rupículas e navegar pelos diferentes meandros ribeirinhos era uma experiência pela qual aguardava com entusiasmo, e não desiludiu. Saíndo do Cais do Ródão, embarcámos a montante da ponte e das portas, atravessando-as, lentamente.

Fico sempre emocionada quando vejo os abutres no seu voo elegante, a circular nas correntes térmicas, e vimos muitos por cima de nós. Saíam de uma “porta”, davam várias voltas, rasavam as escarpas e aterravam do outro lado, uns mais no alto, outros mais próximos da água. Aqui, reside a maior colónia de grifos (abutre-fouveiro) do país e mais de uma centena de outras espécies, como a esquiva cegonha-preta, o abutre-preto (o maior abutre existente em Portugal), a águia-de-bonelli, a andorinha-das-rochas e o melro-azul. O tempo chuvoso não estava propício a grandes avistamentos, mas o espectáculo dado pelos grifos já valeu a pena.
Durante o passeio, o nosso piloto, que era também pescador, mostrou-nos ainda como funcionavam as várias armadilhas de lagostins que se viam na pequena baía formada pela margem do rio e a “Ilha” da Fonte das Virtudes, que é, na verdade, uma península. Ficámos a saber, para surpresa de todos, que a maior parte dos lagostins vai para Espanha. A época forte é o verão. Noutras estações pesca-se lampreia, boga e solha, mas o número de animais é muito instável, devido à poluição causada pelas fábricas de celulose vizinhas.
No topo da porta norte vê-se uma pequena torre. Tendo em conta o desvio e inclinação para lá chegar, foi só quando por aqui passámos de carro que nos atrevemos a subir. Depois de muitas curvas apertadas, numa estrada que vai estreitando cada vez mais, chegámos à capela da Senhora do Castelo, onde dá para estacionar. Caminhando em direcção à torre de vigia, as vistas vão-se revelando aos pouco, com o azul do Tejo a dar um ar da sua graça. Chegados ao miradouro, podemos perceber, de outra perspectiva, esse estreitamento que abraça o rio, mas o deixa seguir o seu curso, que são as Portas do Ródão.
A torre de vigia que encima este lugar está envolta em mistérios. Como monumento, é pouco impressionante, mas vale pelas vistas e pelas estórias. O que se sabe com certeza é que desempenhou um papel importante devido à sua localização. Que D. Sancho I doou a torre aos Templários no século XII, funcionando para vigilância dos mouros. E que séculos depois, nas invasões francesas, serviu como posto de artilharia. Chama-se Torre do Rei Wamba e a lenda que justifica esse nome parece tirada de um episódio de Game of Thrones:
O Rei Wamba, último Rei dos Visigodos, entre os anos de 672 e 680, vivia num castelo na porta norte das Portas de Ródão. O outro lado, a margem sul, era então dominada por um Rei Mouro.
A Rainha do Rei Wamba e o Rei Mouro apaixonaram-se, e aproveitando a ausência do Rei em caçadas e batalhas, namoravam sentados em cadeiras de pedra, cada um do seu lado do Rio Tejo. Morrendo de amores, o Rei Mouro escava um túnel que passaria por baixo do Tejo, para resgatar a sua amada. O Rei Wamba descobre a traição e dirige-se ao Castelo Mouro, disfarçado de mendigo. A Rainha reconhece-o e denuncia-o ao Rei Mouro, que acaba por aprisioná-lo. Sabendo que estaria às portas da morte, o Rei Wamba pede apenas um desejo: soprar o corno que trazia consigo. Mas este era, afinal, o sinal que os seus soldados esperavam para avançar sobre o Castelo Mouro, para trazer a Rainha de volta e assassinar o mouro.
De regresso à Egitânia, a Rainha é julgada em tribunal e sentenciada, por ordem do Rei, a ser atada à mó de um moinho e atirada a rebolar pela escarpa abaixo até ao Tejo. Furiosa, antes da sentença ser executada a Rainha entoou uma maldição:
Adeus Ródão, adeus Ródão,
Cercada de muita murta,
E terra de muita puta,
Não terás mulheres honradas,
nem cavalos regalados,
nem padres coroados.
Reza a lenda que por onde a mó passou, nunca mais cresceu vegetação. Quanto ao resto da maldição, as habitantes riem-se e não comentam.