Dois dias que podiam ser um
Optimista com a minha escolha de chegar ao Forte de Amer por minha conta, esperei pelo Uber à porta do hostel. Já tinha o plano todo na minha cabeça. Chegava directa, pelos meus meios, via o forte, quiçá, se o calor ainda não apertasse muito, caminhava de lá para o forte de Jaigarh e voltava da mesma maneira. Parecia simples.
O carro chegou, entrei, e o condutor ficou parado a olhar para o ecrã. Disse-lhe que queria ir para Forte de Amer. Respondeu-me em hindi. Disse-lhe que não percebia, e voltei a mencionar o forte. Abanou a cabeça em negativa, voltou a dar-me uma explicação que não percebi e manteve-se parado. Repetimos todo o processo umas três vezes até que saí do carro e ele foi-se embora. Chamei outro. Após uns 10 minutos de espera, o outro ligou-me a perguntar para onde ia. Disse-lhe. Começou a falar comigo também em hindi. Passei o telefone ao rapaz da recepção que, entretanto, tinha vindo até cá fora. Estiveram ali uns minutos e o rapaz disse que o carro já vinha. Na app, eu via que não se mexia. Decorridos cinco minutos o condutor ligou outra vez. Passei de novo ao rapaz da recepção. Discutiram mais uns minutos. Afinal não ia fazer a viagem, mas também não a cancelava. Lá se ia o meu plano. Neste ínterim, aproximou-se um tuk-tuk e perguntou para onde ia. Eu, com a memória fresca do dia anterior e já irritada de novo, disse-lhe que queria só ir até ao forte, não queria tours, não queria compras, queria só chegar e dei-lhe o preço que me aparecia no Uber. O senhor, que já levava décadas de trabalho, aceitou.

Pacificada, entrei e seguimos. Pelo caminho, contou-me que era o “guia” turístico de tuk-tuks mais antigo de Jaipur, que toda a gente o conhecia. Que os condutores de Uber não falavam inglês e nem sabiam bem os cantos à cidade. Chegados ao forte, disse-me, com muita calma, que era difícil conseguir transporte de volta. Duvidei, mas como se ofereceu para esperar por mim e me levar, pelo mesmo que tinha pago até ali, aceitei. Já estava a ver por onde ia a conversa depois, mas enquanto o preço se mantivesse justo, não perdia nada.

Chegar ao forte de Amer manteve-me assim na senda do amor-ódio do dia anterior. Começar a vislumbrar o lago Maota, a reflectir as enormes rampas de acesso, muralhas, paredes e chhatri abafou qualquer ressentimento. O forte-palácio, na pequena cidade com o mesmo nome, está localizado a 11 quilómetros de Jaipur. Aquando da sua construção, a finais do século XVI, Amer era a capital do reino com o mesmo nome e o forte foi mandado construir pelo Marajá Man Sing. Para além da função defensiva, serviria como residência da família real e foi sendo acrescentado e renovado pelos vários ocupantes até a capital ser mudada para a nova cidade de Jaipur, em 1727. Por exemplo, Man Singh tinha 12 rainhas, pelo que fez 12 quartos, um para cada rainha. Cada quarto tinha uma escada conectada ao quarto do rei. O Marajá Jai Singh tinha apenas uma rainha, então construiu um quarto do tamanho de três quartos das antigas rainhas.

O forte do forte é mesmo a sua localização. No topo de Cheelon ka Teela, a “colina das águias”, com vista desafogada para a cidade metida no vale e as montanhas Aravalli que o rodeiam, impõe-se e encaixa-se ao mesmo tempo, numa simbiose perfeita de pedras e linhas geométricas. Visto de fora, é um prolongamento da colina, ao qual se acede por escadarias em ziguezague e enormes portões. Sentido por dentro é um labirinto de salas e corredores, distribuídos por quatro níveis distintos, cada um com o seu grande pátio. Consoante o sítio onde estamos, sentimo-nos enclausurados, protegidos ou senhores da paisagem. O espanto é constante.




A entrada ao forte faz-se pelo pátio Jaleb Chowk. Daí, passa-se ao Diwan-i-Am, Salão das Audiências Públicas. Passando o colorido Ganesh Pol (portão) entra-se nos apartamentos internos privados. O Diwan-i-Khas inclui um jardim ornamental e o deslumbrante Sheesh Mahal, o Salão dos Espelhos. As paredes do Sheesh Mahal estão cobertas por um intrincado mosaico de cacos de espelho e vidro colorido que, reza a lenda, serviam para que a rainha pudesse ter a ilusão de ver as estrelas, uma vez que não podia estar no exterior à noite. Quando são acesas velas à noite, a sala parece refletir milhares de estrelas das paredes e do teto. Outras salas internas incluem o Jal Mandir, ou Sala da Victória, que apresenta painéis de mármore esculpido, um teto espelhado e vistas amplas sobre as muralhas do forte. O Sukh Niwas, o Salão do Prazer, é uma sala de mármore que era habilmente refrigerada através da passagem de água por canais. Seria o lugar onde o marajá “relaxava” com as suas mulheres.
Fui caminhando, maravilhada com a decadência luxuosa, imaginando o que não devia ter sido a vida naqueles salões e corredores labirínticos. Quantas histórias guardariam aquelas paredes? De sala em sala, fui dar a um túnel que desembocou na muralha. Já ao ar livre, mas entre paredes, por ali fazia-se a comunicação com outro túnel no forte de Jaighar, por onde a família real podia escapar em tempo de guerra. Tive vontade de caminhar até lá, mas o calor começava a apertar. Subi do corredor para a muralha, onde era possível caminhar e fiquei a observar como as suas linhas acompanhavam o ondular das montanhas, o emaranhado de telhados da cidade no fundo do vale e o verde das árvores que as cobriam.


A muralha, hoje em dia interrompida, circundava ambos os fortes, a cidade e a colina que se vê em frente ao lago. Seria a terceira maior do mundo, depois da Muralha da China e de Kumbhalgarh, também no Rajastão.


Lá de cima, pude ver melhor uma das coisas que mais indignou nesta visita. O uso de elefantes para subir a estrada que dá acesso à porta de entrada do forte. Os carros não podem subir e muitos turistas sobem a colina em cadeiras no dorso de elefantes com roupagens coloridas. Não sei se o fazem por preguiça ou por achar piada, mas é perverso. É perverso o negócio e é perverso que o usem.

Vi também que as filas de gente a entrar estavam cada vez maiores e decidi que tinha chegado a hora de me despedir. Apesar de não ter chegado tão cedo como planeara e de ter de fazer slalom entre vários casais a fazer sessões fotográficas, grupos de 20 e 30 turistas amontoados e muitos outros parados para 40 selfies, tinha escapado às multidões sobre as quais tinha lido. Eram 11 da manhã. Estavam nesse momento a chegar. Fica a dica.
Quando cheguei ao estacionamento, lá estava o senhor do tuk-tuk à minha espera. Arrancou, andou uns metros e lá começou com a conversa sobre levar-me ao melhor mercado. Sorrindo, mas com firmeza, voltei a dizer-lhe que queria apenas voltar ao hostel. Nunca foi mal-educado, mas notou-se-lhe a irritação. Daí para a frente acabou-se a conversa.
Depois de almoçar no restaurante do hostel e descansar um pouco, decidi ir à estação de comboios para tentar arranjar um bilhete de Bundi (o meu próximo destino) de volta a Delhi. Conseguia ver que só restava um bilhete em 1.ª classe para a viagem nocturna, mas não o conseguia comprar online e não tinha encontrado nenhuma agência de viagens nas redondezas. O site da 12GoAsia já consegue safar alguns bilhetes sem a confusão impossível que é o site oficial da Indian Railways, mas não aparecem todos os comboios nem todos os lugares disponíveis. Atravessei as ruas caóticas sem passeios, a levar com torvelinhos de pó na cara para não resolver nada. Só havia guichés a abarrotar de gente, com tudo em Hindi. Perguntei a dois seguranças que não me souberam ajudar e voltei pelo mesmo caminho empoeirado. Entretanto, na recepção do hostel e ao contrário do dia anterior, disseram-me que talvez um dos rapazes que entrava mais tarde me pudesse ajudar, e ajudou. Ao final do dia, ligeiramente triste por não estar em alguma daquelas muralhas, a ver o sol a pôr-se nas montanhas, mas consciente de que já não tinha em mim a paciência para negociar transportes, sentei-me num restaurante no topo de um edifício, a beber uma Kingfisher gelada, a tirar notas do dia e a ler o Versículos Satânicos. O sol foi baixando e a minha irritação foi arrefecendo ao ritmo da cerveja e das palavras. Pensei: “tenho a sorte de poder voltar por estas bandas mais vezes e ver o que me faltou, mais consciente das dificuldades”. E a calma daquele momento, provavelmente, não teria sido tão fortemente sentida, tivesse o dia sido perfeito. Pedi umas pakoras, troquei umas palavras e um sorriso com a dona do restaurante e acabei o dia em bom. Amor-ódio, amor-ódio, amor-ódio.
No meu descanso, em busca de algo que me fizesse por um lado fazer as pazes com Jaipur e por outro sentir que a minha passagem por ali contribuíra com algo mais, tinha encontrado uma empresa chamada Pink City Rickshaw Co. Criada por uma ONG que se dedica a promover projectos que visam alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, é uma empresa onde mulheres de muito baixos rendimentos são treinadas para guiar e arranjar tuk-tuks eléctricos cor-de-rosa, passando depois a ser accionistas e donas da empresa. Desta maneira, ao mesmo tempo que promove o empoderamento feminino e combate a pobreza, promove um meio de transporte mais ecológico, tão necessário numa cidade (e um país) com elevados níveis de poluição. A companhia tem várias visitas diferentes a Jaipur, focadas na comida, no artesanato, nos monumentos e na vida da cidade. Escolhi a curta visita matinal, “Wake Up with Jaipur”, que me levaria a lugares que ainda não tinha visto e me permitia ver a cidade na sua forma mais tranquila. Apesar de mais caras que o que tinha pago ao Imram, tudo me pareceu ser um preço mais justo, para o que oferecem.

Às 7:30 da manhã, como combinado, estava um tuk-tuk cor-de-rosa à porta do hostel. Baghya Shree, a minha guia-condutora, estendeu-me a mão num aperto tímido com um sorriso franco e apresentou-se. Seguimos pelas ruas de Jaipur, tão caóticas nos dias anteriores, tão tranquilas àquela hora. O ar estava fresco e a luz límpida, ainda sem o pó que a abafa mais tarde. O inglês de Baghya era muito limitado, mas ia-se esforçando por me apontar alguns pontos turísticos. Os portões da cidade, o cinema Raj Mandir, os nomes das ruas. A condução era suave e não havia barulho. Só por esse bocadinho já tinha valido a pena. A primeira paragem foi no templo Govind Dev Ji, ao pé do City Palace. Dedicado ao deus Krishna, fervilhava de agitação. Baghya levou-me até ao sítio para deixar os sapatos e levou-me pelo braço docemente até à sala principal, decorada com as mesmas pinturas e arcos do palácio.

Toda a gente entoava cânticos, havia tambores e sininhos, batiam-se palmas, alguns dançavam, outros só levantavam os braços, o ambiente era de festa e alegria. “Come, come”, instigou-me Baghya a contornar o altar principal, junto aos outros devotos. “Very Happy. Krishna is my God”, confessou-me. Eu também estava muito feliz por partilhar aquele momento com ela.

Arrancámos de novo e entrámos nas ruas do mercado. Foi-me apontando as diferentes zonas. Ali os vendedores de leite, que entram na cidade com as suas vasilhas penduradas nas bicicletas e se colocam todos na mesma rua; mais adiante os mecânicos de motas, depois as zonas de vegetais. Estacionámos e seguimos a pé pelo mercado das flores. Muito mais pequeno que o que costumo visitar em Calcutá, mas igualmente colorido, estava já no final da sua actividade. A maior parte das flores vai para os templos, e as cerimónias começam ao nascer do sol. Baghya insistiu em comprar-me uma grinalda de flores brancas, que levei ao pescoço até ao fim do tour.

De novo sobre as rodas cor-de-rosa que provocavam olhares de admiração pelas ruas, fomos até ao Hawa Mahal, o Palácio dos Ventos. Já o tinha visto no primeiro dia, mas aquela era a hora perfeita, em que o sol dourado lhe incide de frente fazendo sobressair o rosa e as janelinhas, e as ruas ainda não estão cheias de gente e veículos. Um pouco mais à frente, fizemos a última paragem para um chai fumegante, numa banca de rua onde se acumulavam senhores engravatados, homens de chinelos e dhoti e estudantes uniformizados de ambos os sexos e idades variadas. Tinham passado duas horas num instante e estava na hora de nos despedirmos. Baghya deixou-me de novo no hostel, com um sorriso e um acenar de cabeça cúmplice. Não lhe cheguei a dizer que me tinha ajudado a fazer as pazes com Jaipur. Duas horas depois fiz-me à estrada para Bundi.
Depois de ler o primeiro dia desta narrativa, o Borja comentou que tinha gostado do texto, mas não sabia se ficava com vontade de visitar Jaipur. E eu percebi-o. Eu também passei o tempo todo naquela dicotomia amor-ódio, a duvidar das minhas escolhas. O meu objectivo não é nunca convencer ninguém que determinado sítio é óptimo, mas contar o que por lá vivi, portanto a escrita tinha transmitido exactamente o que pretendia. Mas fiquei a pensar nisso. As viagens também se fazem de aprendizagens e nada nos ensina mais que os percalços do caminho. Em retrospectiva, se tivesse organizado os meus dias de maneira diferente, teriam sido mais fáceis e tranquilos e teria desfrutado mais da cidade? Talvez. Nunca saberei e não é algo que me preocupe. Teria certamente menos histórias para contar, por isso não me arrependo de nada. Mas, já que estamos, deixo-vos um possível roteiro para dois dias bem aproveitados em Jaipur, resultado dessa aprendizagem.
Dia 1 : O dia dos fortes.
Partindo do princípio que chegam a Jaipur durante a manhã ou ao início da tarde, dediquem o resto do dia aos fortes, que são também um dos melhores sítios para ver o pôr-do-sol. Comecem por Amer, caminhem desse a Jaighar e terminem a ver o pôr-do-sol desde Nahagarh (o Tiger Fort), que é o que está mais próximo de Jaipur. A melhor maneira de gerir o transporte é contratar um tuk-tuk para vos levar a Amer, apanhar em Jaighar e levar-vos e esperar enquanto visitam o Nahagarh. Tendo em conta que vai estar ocupado a tarde quase toda, contem com umas 1000 rupias, ou um pouco mais.
Aqui têm bastante informação sobre como visitar os três fortes.
Dia 2: Jaipur, a cidade rosa dos palácios e o Templo dos Macacos
Para ver o centro da cidade velha, o City Palace, Jantar Matar, Hawa Mahal e os mercados, não é preciso contratar nenhum tour nem transporte. Dependendo da localização do alojamento (o meu estava afastado), será só uma questão de chegarem às portas da cidade. O que eu faria hoje, seria o tour matinal que fiz com a Pink City Rickshaw Co., e ficava já no centro, depois do chai, para explorar depois por minha conta. Ao fim do dia, sigam para o Galtaji, o “templo dos macacos”. Falem com o Suraj, que vos pode fazer a visita por lá e facilitar o transporte para chegar. É só escrever-lhe para o Whatsapp +91637571710821 .