Sobre a melodia de duas guitarras José fecha os olhos, respira fundo  e declama um poema que, aprendo mais tarde, é uma Cantata Riojana. Tem 70 anos, cabelo branco farto, barriga proeminente e sobrancelhas grossas. Acompanha o ritmo das guitarras, ou são elas que o acompanham a ele? Não sei do que falam estas palavras, e não interessa. Saem pela boca como que espremidas directamente de algum ponto profundo da alma, de um passado comum e comunitário que ficou gravado nos corpos. Somos 50 e estamos mudos. Até as cigarras parecem ter abrandado o seu frenesim. A noite vai longa, o dia mais comprido foi, mas a paixão do que se diz não esmorece um segundo. De repente, do lado oposto do alpendre começam novas palavras, complementando e continuando as primeiras, agora a outra voz.

Sorrio e contenho as lágrimas. O sentimento de pertença é maior do que posso exprimir, inexplicável pelo tempo que passei aqui e no entanto…

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Quando se chega ao “Campo” dos Machado respira-se fundo. Não apenas porque se passaram horas em caminhos esburacados, mas principalmente porque imensidão do que se abre à nossa frente pede uma golfada de ar. À direita a casa, em tons de terra, um asador que ocupa toda uma parede por baixo do alpendre , bancos corridos e mesas cobertas de comida. À esquerda os estábulos e o curral. Em frente um relvado, que se continua num declive com uma piscina ao fundo. Para lá disso um campo de ténis esburacado, depois e para todos os lados campos cultivados a perder de vista. No horizonte as Sierras Centrales de Córdoba. É acolhedor e avassalador.

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São os 65 anos de Fernando, amigo de infância da “Gringa”, a minha anfitriã. Está montado um fim-de-semana para 50 convidados e já cá está metade quando chegamos. São família, amigos, filhos, amigos dos filhos e amigos dos amigos, como eu, a Marlies e o Joris.

Somos recebidos como se sempre tivéssemos feito parte do grupo, estrangeiros, mas não estranhos. Estendem-nos uma cerveja, sentam-nos em frente de aperitivos e a conversa continua no ponto onde parou, naturalmente. Interpelam-nos com perguntas quando surge a curiosidade e respondem às nossas quando acontecem.

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A carne está no assador  e vai sendo comida enquanto o dia se desenrola. As idades variam entre os 13 e os 70 anos, mas isso parece não importar ao convívio. Lembro-me das minhas reuniões familiares e como, por vezes, queria fugir delas e surpreendo-me pelo quanto me sinto bem aqui.

Joga-se ping-pong e, mais tarde, far-se-ão equipas de volei. Quem fica de fora goza com quem se tenta esforçar. Apesar da idade, do peso ou da destreza toda a gente se põe a jeito e responde aos piropos na mesma moeda.

***

O almoço pega-se ao lanche. Formam-se grupos pequenos. Junto à piscina roda um mate amargo. Estamos 15 mulheres, mães, filhas e amigas de ambas. Chego a meio da conversa e não contenho o espanto ao perceber o tema. Discute-se o silêncio do amigo de Fernando, solteiro, e como este parece bem para uma das meninas solteiras. As “meninas” são são a Gringa, a Claudia  e a Estela, com idades compreendidas entre os 58 e os 63 anos. Conhecem-se há mais de 30 anos e apoiaram-se nos divórcios de umas e na solidão da outra. Soltam gargalhadas altas. Concordam que poderia ser interessante e esta bueno, mas não fala e es medio raro… A conversa flui entre opiniões e análises psicológicas e sociológicas de quem o faz como profissão, para logo depois se desmanchar a rir.

Noutros grupos joga-se o sempre presente truco e jogos de tabuleiro. Discutem-se trivialidades, política e profissões. Há amigos que não se vêm à muito, outros que partilham o dia-a-dia. Dão-se palmadas nas costas, abraços, há risos no ar. O tom eleva-se, para depois se acalmar. Quase sem dar por isso tenho uma lição de história e costumes Argentinos. Falo de Portugal e da  Europa com um interesse e entusiasmo que não conhecia e dou por mim a estabelecer comparações e aproximações que ainda não tinha percebido.

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O sol já se pôs há muito quando se reacendem as brasas. Depois de jantar trazem-se as guitarras e não se deixa apagar a música até à madrugada. Cantatas, músicas populares e não tão populares, tangos e chacareras sucedem-se numa alternância de silêncios sentidos e euforia. Alguém se levanta e começa a dançar. A Gringa puxa-me para o meio da roda e eu coro. Sento-me de novo e fico a olhar e ouvir, com o coração cheio. O Joris está ao meu lado e sorri também. Diz-me que está feliz e emocionado e que se nota que eu também.

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Quando o sono vence o último resistente, e não um segundo antes, distribuímo-nos pelos quartos. Deito-me com a Gringa e a Claudia em colchões no chão enquanto 4 outras miúdas se distribuem nas camas. Penso nas minhas avós e em como não acho que dormissem assim.

Há gente amontoada noutros quartos, no escritório, pelo chão dos corredores. Alguns montaram tendas no jardim.

A Claudia avisa que vai ressonar. A Gringa confirma. Há uma borboleta preta gigante no tecto que me impede de adormecer logo, apesar do cansaço. A Gringa goza comigo. Entre conversas vão adormecendo uma a uma. Ouve-se um ronco, seguido de gargalhadas abafadas e lentamente a casa toda adormece. Decido ignorar a borboleta a fecho os olhos. (Amanhã será um dia igual.)

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