Saberemos realmente como é não poder contar com a visão? Um jantar às escuras pode ser uma boa maneira de o experienciar, mas também nos mostra que há muitas ideias pré-concebidas a eliminar. Fomos ao Bem-me-quer para um festim de sabores e texturas e trouxemos uma noção muito mais profunda do que significa não poder contar com aquela que é, para a maioria, a nossa bussola interna. E que, afinal, existem muitas outras maneiras de “ver” o mundo.
Como na escola
Colocamo-nos em fila indiana. Há um jantar para saborear, mas antes há-que chegar à mesa. Passamos as cortinas e entramos na sala. Agora estamos no mundo da Ana, invisual e nossa guia na experiência. Dela dependemos para encontrar o nosso lugar sem tropeções. Não há luz, não há cor, só negro a nosso redor. Sem as referências de que dependemos normalmente, não conseguimos identificar o espaço nem perceber a nossa posição nele. Sinto-me desorientada.
Como crianças em excursão damos as mãos, agarrando-nos ao familiar, formando um cordão humano que nos permite sentir, sem ver, o caminho. Um a um somos levados pelo braço até ao respectivo assento. “A Filipa senta-se aqui”, ouço dizer a Ana numa voz tranquila, enquanto as minhas mãos pousam nas costas lisas da cadeira e eu respiro de alivio. “Ok, já aqui estou” penso. A mesma viagem para todos, a mesma calma de um lado e risinhos nervosos do outro. Apalpo a cadeira, passo os dedos pela borda mesa, meço as distâncias pelo espaço que as separa das minhas mãos. Penso que, sem verem, os cegos têm noções espaciais mais prácticas que nós, visuais. Xis passos para chegar ali, a distância de um braço, ou de um pé ou de um dedo para alcançar tal objecto. Pormenores nos quais nem pensamos no dia-a-dia.
Sei quem tenho ao meu lado e nos restantes lugares pelas vozes que vão chegando. Olho para as palmas das mãos, que não vejo, e começo a tactear a mesa a medo. Vai começar o jantar.
Os dedos na panna cotta
Diz-se que a ausência de visão exacerba os outros sentidos. O olfacto não é o meu forte e, talvez por isso, não sinto que perceba mais os aromas da comida. Já nas texturas e no sabor é um festim. Quando nos sentámos tínhamos já uma entrada de pequenas focaccias num recipiente à nossa frente. Sempre muito delicadamente, sem saber o que encontrar ou se podemos derrubar alguma coisa, tacteamos o seu exterior até sentir a borda e chegarmos a uns quadrados, com textura de torrada. “São de azeitona”, “A mim sabe-me a pesto”. Mais apalpadelas, mais provas até chegarmos à conclusão que há das duas.
Seguem-se 3 sopas, com temperaturas diferentes. O gaspacho, frio, e o creme de cogumelos, quente, são unanimemente identificados. Este último escorrega como veludo sobre a língua, deixando um rasto de bosque e Outono que não apetece apagar.
Fica a dúvida se haverá curgete no recipiente morno, que se confirmará certa no final.
Nos pratos principais joga-se principalmente com texturas. Munidos apenas de uma colher e sem combinarmos, atacamos todos primeiro o arroz. Integral, é ligeiramente duro e contrasta bem com a maciez das frutas incorporadas. Estamos seguros da presença de tangerina, da qual nos calharam gomos inteiros, e de passas. Suspeita-se de kiwi. Há quem duvide, mas estou convencida que as folhas firmes e férricas são de espinafres.
Os dois outros componentes opõem-se e complementam-se. Um folhado estaladiço de queijo de cabra e um souflé esponjoso de bróculos. O primeiro crocante, de sabor forte, que nos enche a boca, o segundo mole, de sabor suave que a acalma. Gosto mais do folhado.
As sobremesas são (mais) uma surpresa inesperada. Um banquete em si mesmas. Parece que não acabam. São taças e pratos e pires e quadradinhos com pequenos pedaços de céu. Explica-nos a Ana que são várias coisas e que podemos comer como quisermos. Só a do recipiente maior é que convém ser mesmo com a colher fornecida. Tarde demais, já há quem, na ansiar de “ver” o que por ali vai, pôs os dedos na panna cotta. Outros há (e foram vários) que só se apercebem a meio que estão a usar a colher ao contrário. Nada disso importa quando as papilas gustativas se embebedam de doces.
Esferas que explodem com sabor a uva, o esponjoso e crocante de um cheesecake cítrico, um morango mergulhado em chocolate (“nem quero pensar como vai estar a minha cara quando voltar a luz”), um crepe fofo com doce de gengibre e um bolinho redondo, de chocolate ainda mole, que se derrete mal o pomos na boca. Este final foi toda uma colecção de pecados.
Olhos que não vêm, coração que sente mais
A conversa flui, sem esforço ao longo de todo o jantar. Não vemos os olhos dos interlocutores e, talvez por isso, interrompemo-nos menos. A audição é a nossa referência. A ausência de som é o sinal para avançar e, portanto, esperamos por ela. Será que a escuridão nos torna mais respeituosos? Ou simplesmente mais calmos?
A Ana está connosco durante todo o jantar, e, no entanto, mal damos por ela. Notamos a sua presença quando já está ao nosso lado, a recolher tabuleiros ou entregar outros. Olhos que não vêm coração que não sente? E quem tem olhos que nunca vêm?
Está claramente demonstrado que os cegos têm os outros sentidos mais desenvolvidos. Isto não significa apenas que são capazes de ouvir, sentir, cheirar ou saborear com mais pormenor. A maneira como integram cognitivamente essa informação é também diferente e permite-lhes “construir” um imagem mental muito mais pormenorizada do espaço que os rodeia (está até demonstrado que as áreas do cérebro responsáveis pela visão estão activas durante este processo, mesmo nos cegos). Esta diferença na “descodificação” dos estímulos sensoriais permite-lhes também aceder mais fácil e rapidamente à informação, o que lhes confere uma melhor memória de curto e longo prazo.
Assim, num dado momento, um invisual poderá estar a perceber muito mais do que se passa à sua volta, que uma pessoa que vê, e está focada apenas nesse estímulo. Para além disso, como vê não só o objecto da sua atenção, mas tudo o que o rodeia, um visual terá muito mais tendência para se dispersar.
Ou seja, enquanto nós nos ouvimos um a um, e saboreamos esta comida deliciosa, a Ana percebe tudo o resto que se passa à nossa volta e que nós ignoramos, porque não vemos..Enquanto nós dependemos muitas vezes do olhar dos outros para perceber como estão e como se sentem, a Ana, provavelmente, conseguirá “ver” tudo isso muito mais facilmente. Afinal, se “o amor é cego” é porque o coração não precisa de olhos para ver.
Miopia do tacto
Muitas vezes, em conversas parvas que todos temos, dei por mim a dizer “se me faltasse uma faculdade acho que queria que fosse a fala. A visão é que não”. Saio do jantar a pensar que se calhar não é tão mau como pensava. Não será bom, certamente, mas fico com a sensação de que afinal os percebo um pouco melhor e que poderá nem ser o drama que sempre imaginei. Que, como tudo, será uma questão de hábito.
Mas depois vem aquela senhora no autocarro. Entra, com a sua bengala a sentir o caminho. Vai distraída com os seu pensamentos e, de repente levanta-se e pergunta, aflita “é o Saldanha aqui?” Primeiro ninguém responde e quando pergunta de novo, as portas estão quase a fechar. Era, e subitamente toda a gente grita para o motorista não arrancar. Ela lá sai, aos encontrões, na pressa, e consegue descer do autocarro. Lá fora sente o chão com a bengala , mas hesita entre virar para a direita ou para esquerda, segue mais uns passos em frente e choca com a paragem. Parece-me que achava estar mais à frente no caminho. Parece desorientada…talvez costumasse sair noutra porta, talvez o motorista costume parar mais à frente, ou mais atrás. Para quem sente e tem de prever o que vem a seguir a regularidade é essencial e as distâncias são tudo. Engulo em seco…É, há muita coisa a que nos podemos habituar, mas isso não o torna mais fácil. Nada é linear, e se no jantar aprendi que devemos usar mais todos os nossos sentidos e não confiar quase exclusivamente na visão, nem por isso cada um deles nos faz menos falta. Afinal, as pontas dos dedos são olhos com pouco alcance.
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