Descida ao Inferno

Nas minas de Potosi – Bolivia

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Olho para o arco que é a entrada da Mina da Candelária enquanto Ronald, o nosso guia, nos informa que vamos descer até ao 4º nível. Entramos em fila indiana, Ronald  à frente , um ajudante em último. O primeiro túnel tem cerca de 1.80m e um palmo mais que a nossa largura. Passam 10 minutos, e apesar do cansaço devido à altitude penso que afinal isto não é assim tão difícil; é uma questão de nos habituarmos ao pó e à escuridão. Ronald aponta para um buraco no chão com uma escada tosca de madeira ”Descemos ao segundo nível”.

No fundo da escada um túnel onde temos de passar de gatas. Cinco minutos depois a minha respiração acelera, pede mais oxigénio que não existe, só pó. Tudo à minha volta é cinzento. Penso que não sei se vou conseguir continuar, mas também não consigo fazer o mesmo caminho de volta. Penso que se calhar quero mesmo voltar para trás e que nunca me devia ter aqui metido. Paro e chupo mais forte nas folhas de coca que se acumulam na minha bochecha.

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Afastamo-nos o possível para deixar passar um mineiro carregado com uma saca de pedras que está a subir à superfície depois de 8 horas de trabalho. Pede-nos “puro”, que não temos. Sinto-me ridícula pelo meu ataque de pânico aos 15 minutos sem carga nenhuma. Acalmo-me e continuo pelo túnel que agora me obriga a rastejar, até que finalmente nos podemos pôr de novo em pé.  Caminhamos agora sobre os carris dos carros de transporte.

O Porquê

No dia anterior, ainda antes de pagarmos os 100B (9,5€) que custará a visita assinamos a declaração de responsabilidade:

“A mina que vão visitar é uma mina activa, pelo que existem riscos de explosão e desabamento em que incorrem em perigo de vida ou lesões graves e permanentes. Os espaços são muito reduzidos pelo que se desaconselha a pessoas com claustrofobia e problemas cardíacos ou respiratórios.

Declaro que conheço estes riscos e retiro qualquer responsabilidade da empresa organizadora do passeio.”

Hesito antes de assinar…quero mesmo fazer isto? Haverá necessidade? As opiniões de outros viajantes dividem-se entre o “têm mesmo de fazer isso” e o “não se metam nisso, é uma experência horrivel”.

A descoberta de grandes filões de prata no “Cerro Rico” levou à fundação da cidade mineira de Potosi em 1545, na base desta montanha. Apesar das dificuldades de viver a 4090m de altitude, durante 2 séculos foi a maior fonte de prata do Império Espanhol e chegou a ser uma das cidades mais ricas e populadas da América Latina. No século 19 as guerras da independência,a quase exaustão da prata e uma queda acentuada nos preços levaram a uma crise económica da qual a cidade ainda não recuperou totalmente.

Actualmente, apesar de ainda se procurar prata, a extracção é maioritariamente de estanho, chumbo e zinco e é ainda da mina e da indústria a ela associada que vive grande parte das famílias. Conhecer as minas é perceber melhor como vive essa população. É perceber as dificuldades, o que move a cidade. Firmo o meu nome e tento não pensar mais nos riscos; amanhã logo comprovarei se são reais.

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Às compras

Ainda longe da entrada da mina equipamo-nos de galochas, macacões, capacetes com lanternas e lenços para a boca. Risinhos nervosos com a desculpa das nossas figuras escondem mal a apreensão sentida.

Ronald  é o nosso guia. Durante 2 anos ajudou o pai como mineiro. Quando teve conhecimento da possibilidade de trabalhar como guia começou a tentar mudar de vida. Não queria ter o mesmo fim. Com muitas perguntas sem resposta, insistências e aceitando condições iniciais como a ausência de pagamento não desistiu enquanto não conseguiu. Conta-nos isto para explicar porque não devemos levar a mal quando nos chama “gringos”. Adora os “seus” gringos pela possibilidade que lhe dão de uma vida diferente.

Explica-nos as regras básicas e leva-nos a visitar a “rua dos mineiros”. A ideia é mostrar-nos o que levam para dentro das minas, mas principalmente levar-nos a comprar “presentes” para os mineiros. Não sei se concordo com isto, mas percebo que seja o preço a pagar pela intrusão no seu trabalho. Levo 2 sumos e um saco de folhas de coca.

Depois de o provar e para muito espanto de Ronald, ninguém do grupo compra o “Puro”; álcool a 90% que, segundo nos explicam, os mineiros bebem ainda dentro da mina à 6ª feira (mais tarde percebemos que não só a esse dia) e oferecem ao “Tio”, o Deus/Diabo que ao mesmo tempo os amaldiçoa e protege debaixo da terra.

Lucio

Caminhamos no 2º nível. Ronald fala em Quechua com um miudo que carrega um carrinho de mão com pedras. Chama-se Lucio tem 15 anos, trabalha na mina à 2 juntamente com o pai e o irmão mais novo; das 8 às 5, 6 dias por semana. A bochecha do tamanho de uma bola de ténis alberga as folhas de coca. O pai explora esta zona sozinho e com esta ajuda extra consegue optimizar o trabalho. Percebo que Lucio estava a chorar quando chegámos e que tenta esconder as lágrimas. O pai e o irmão estão mais atrás, a picar a parede.

Tenho vontade de tirá-lo dali, de lhe dizer que não tem idade para isto, que não devia estar ali, mas sim na escola. Limito-me a dar-lhe o sumo que comprámos. O pai pergunta se não temos “Puro”. Tento perceber as dificuldades do pai, a  falta de dinheiro, a necessidade de ajuda, mas o sentimento de revolta é demasiado grande.

Continuando a descer

Seguindo pelo caminho dos carris paramos junto a uma galeria para deixar passar um carro empurrado por 3 homens. Ronald troca mais umas palavras que não entendemos e explica-nos que estes fazem parte de uma cooperativa. Nem tudo o que extraem é para eles, mas trabalham com mais homens e têm mais material.

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Descemos mais um túnel apertado, agora sem escadas. Apoiamo-nos nas paredes laterais como podemos. Sinto-me a escorregar para cima de alguém à minha frente e já tenho pó dentro das botas. “Isto não é seguro…”. Quando voltamos a um túnel horizontal uma das raparigas holandesas está a chorar; não consegue respirar bem.

A lâmpada do meu capacete deixa de funcionar e o meu coração acelera de novo; sem luz não vou conseguir avançar de certeza. Um dos guias de apoio troca o capacete comigo e fica ele sem luz. Enquanto esperamos que a rapariga holandesa se acalme aproveito para beber água e acalmar-me eu também.

Don Martin

Numa cova onde apenas cabemos de cócoras conhecemos Don Martin. Com 39 anos que aparentam 60 trabalha aqui à 28, 6 ou 7 dias por semana, 12 horas por dia. Passam-se semanas em que não vê a luz do sol. Dentro de um túnel com 50 cm de altura faz orifícios para colocar a dinamite, e após a explosão retira as pedras que apresentam minerais. Trabalha sozinho, o que significa que carrega às costas sacos de pedras até à superfície pelo mesmo caminho que nós dificilmente fizemos sem nada.

Sentado, muito magro, joelhos dobrados quase ao nível das orelhas faz-me lembrar uma aranha. Conta-nos que tem 4 filhos, que não quer que eles trabalhem nas minas e que ainda tem mais 5 anos de trabalho para poder receber pensão de reforma…Pergunto-me se lá chegará, ou que velhice terá depois de 32 anos debaixo de terra a respirar pó.

 

Ar puro

Estamos no 4º nível e quase no fim da visita. Falta-nos apenas conhecer o “Tio”, uma estátua de barro, com uma galeria própria.  Para isso temos de entrar em mais um túnel apertado em que só passamos deitados, de barriga para cima a escorregar por uma tábua. A holandesa diz que não consegue, que espera nesta galeria. Eu quero ficar com ela. Não quero pensar em como será voltar por esse buraco. Gritam-nos que é tranquilo, que é um percurso muito curto e que não há pó ali, só está calor. A medo deixo-me convencer.

Lá dentro conseguimos realmente descansar do pó. Ronald coloca algumas folhas de coca na boca do “Tio”, adicionando-as a outras que já lá estavam.A estátua  está rodeado de latas de cerveja, garrafas de puro e beatas; as oferendas para protecção dos mineiros.As explicações continuam, mas já não as consigo ouvir. O calor começa a incomodar-me e quero sair dali rapidamente.

Fazemos o caminho de volta mais facilmente do que estava à espera. Há medida que nos aproximamos da saída o ar torna-se menos carregado. Quase corremos até à rua quando vemos a luz ao fundo do túnel. Cá fora tiramos os lenços e respiramos fundo. Ninguém fala, só inspiramos e expiramos sofregamente. Estou estoirada, doi-me a cabeça, tenho vontade de chorar e só ali estive 3 horas.

 

Que futuro?

Mesmo depois do banho continuo a sentir pó na garganta e agarrado às mãos. Vamos dar uma volta à cidade e estou calada e pensativa. Sinto a cabeça pesada com as memórias da tarde; pergunto-me se realmente não haverá outra hipótese para esta gente. Quanto deste trabalho é realmente por necessidade, por opção ou por tradição. Ronald diz que 70% dos trabalhos são relacionados com a mina, seja como mineiros, nas refinarias ou no transporte. Que se as minas acabam Potosi se tornará uma cidade fantasma.

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Parece-me difícil de acreditar caminhando por estas ruas movimentadas, cheias de crianças e jovens  em fardas de escola, olhando as casas coloniais coloridas, as igrejas centenárias bem conservadas, mas que sei eu… só sei que estou cansada e triste. Não me arrependo de ter descido às minas, mas nunca mais o quero fazer.

 

 

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