Paraíso? – Light House Point

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O vento morno balança a rede e acaricia-me a pele. Empurra-me gentilmente as pálpebras. Pela fresta do que são os meus olhos vejo a colina a descer para a praia. O mar é o meu horizonte, as ondas a música. Dilani cozinha, dois esquilos copulam numa árvora, um cão dorme na sua sombra. Pouso o meu livro e deixo os olhos fecharem. Mais tarde escreverei:

Paz
Paraíso, Paraíso Paraíso

***

Dilani sorri, um sorriso cansado. Não nos cansamos de lhe dizer que está no céu, aqui, ela responde que já queria uma coisa diferente. Uma cidade onde pudesse pôr as crianças na escola e onde pudesse estar perto do marido. Pergunta-nos se queremos trocar de vidas.

Mas também diz que Hilltop Cabanas é como o seu terceiro filho. Que por agora continuará a desenvolvê-lo. «Agora plantámos estas flores»,  aponta com a cabeça para a pequena árvore com flores rosa à nossa frente. «Gosto muito. Vou plantar mais»

Construíu o lugar do nada, a partir de 2011. Vir aqui parar nunca lhe tinha passado pela cabeça.

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Dilani é de Arugam Bay, a 30 minutos daqui, mas vivia  em Colombo com o marido e a filha quando decidiram comprar este terreno, para vender mais tarde. Era um bom negócio e a vida corria-lhes bem.

Então 2010 aconteceu. A empresa que empregava o marido começou com problemas financeiros e tiveram de mudar-se para Putallam, no noroeste, onde o nível de vida era mais barato. Só que Dilani aborrecia-se. «Não podia estar alí sem fazer nada. Ficámos 6 meses e disse-lhe que ia para Arugam Bay, ajudar os meus pais no seu hotel. Mas numa familia grande há sempre confusões e acabei por ficar só alguns meses»

Decidiram então usar as poupanças para começar a desenvolver o terreno. Limparam a terra e começaram a construir, sozinhos. Primeiro a casa principal, onde está a cozinha, o alpendre onde fazemos as refeições e preguiçamos nas redes e um quarto, no primeiro andar. É lá que dorme com o seu bebé de meses e as duas raparigas que a ajudam. Depois, uma casa de banho exterior e três cabanas para hóspedes. Todas em madeira, com telhados de colmo e um pequeno alpendre, de frente para o mar. Uma cama com rede mosquiteira, uma prateleira e a sensação de que não precisas de mais nada na vida.

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«Foi muito dificil. Não há electricidade, nem estrada. Ao inicio não sabia como resolver o problema. Depois aprendi sobre painéis solares.» Estão dois destes painéis apoiados em estacas em frente ao alpendre. Carregam duas baterias que acumulam energia suficiente para ter luz eléctrica nas cabanas do pôr-do-sol até às 10 da noite, e carregar as baterias dos telemóveis e máquinas dos hóspedes. Depois disso saem as estrelas.

«Como mulher, é um grande desafio. E tive de fazer quase tudo sozinha, com um bebé pequeno, porque o meu marido tinha de trabalhar durante a semana. Mas correu bem. Abri em 2011, vai bem. É o terceiro ano, já temos mais uma cabana e vamos construir mais.»
2013 também trouxe outra criança. O pequeno Arak vive aqui e é mimado por todos nós. A filha, com quatro anos, vive com os avós em Arugam Bay, para poder ir à creche.

Como não há electricidade, não há frigorífico. Mas existe uma arca. Dilani levanta-se todos os dias às 5.30 para ir na sua scooter à vila buscar gelo, frutas e vegetais. Conta-nos tudo isto sentada à mesa, enquanto comemos os noodles que fez para o almoço. À noite faz um jantar comunitário para os hóspedes que queiram. Ela decide o que vai ser e diz-nos durante a tarde. Cerca das sete sentamo-nos à volta da mesa, passando tachos e panelas entre nós. Discutindo as ondas do dia e quão sortudos somos por estar alí, longe das multidões de Arugam Bay, com a praia só para nós.

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Na época baixa, Dilani fecha tudo e junta-se ao marido, em Monaragala. Na época alta ele vem aos fins-de-samana, quando pode, para ajudar. «He is a good man

***

E pensar que quase não viémos. Para chegar tem de se percorrer um caminho de areia, sem sinais nem luz. Tinhamos ouvido falar de elefantes na estrada e sido avisados que devíamos evitar conduzir depois do anoitecer. O sol já se punha quando nos fizémos ao caminho e hesitámos, mas a persistência do Nuno convenceu-nos. No fundo sabíamos que estava certo. Que este era O lugar que queríamos. No caminho, o meu coração assemelhava-se a uma bomba relógio à medida que derrapávamos na areia, às escuras, saltando em cima das scooters a cada buraco e cada som.

Íamos ficar dois dias. Já passaram quatro. Os dias passam sem dar-mos por eles, tranquilamente. Acordar ao nascer do sol, praia, surf, sol, redes, sombra, almoço, mais redes, mais sombra, mais sol, mais surf. Às vezes fico horas no alpendre, lendo “Running In the Family”, do Ondaatje. Apreciando a beleza das palavras, cada palavra, sobre este país sobre o qual não me decido, mas que se começa a entranhar em mim.

Porque será que não consigo estar assim quieta, em casa? Que tenho sempre a sensação que devia estar a fazer alguma coisa, a ir a algum lado, a ocupar o tempo com actividades? É verdade que aqui estou em “algum lugar”. Talvez precise de partir para ser capaz de apenas estar, mas tenho de arranjar maneira de transportar esta sensação para casa.

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Hoje é o nosso último dia. Aproveitamos a tarde para explorar as redondezas, já sem medo de regressar depois do pôr-do-sol. Vemos quiilómetros de campo vazio, seguido do verde das palmeiras. A selva a fechar-se ao longe. Terras cultivadas e arrozais pontilhados de bufalos de água cinzentos. Depois do caminho de areia, uma estrada semi-pavimentada com algumas casas, espaçadas. Pavões correm ao longo da estrada, vacas atravessam a estrada, cabras bebé perseguem os pais. Crianças com sorrisos intermináveis acenam quando passamos e alargam o sorriso ao impossível quando acenamos de volta.

Cães esqueléticos sentam-se à porta de lojinhas que era suposto venderem cigarros. Um cliente senta-se à porta de uma destas lojas e oferece-nos um biri para compensar a ausência do tabaco. Aperta-nos as mãos entusiasticamente e apresenta-se. Tentamos pronunciar o seu nome. Falhamos. Ri-se com vontade mostrando os dentes podres, vermelhos do betel. Pergunto-me o que o faz parecer velho, mas sem idade: o contraste da barba e cabelo brancos, a pele queimada, enrugada do sol, com a vida dos seus olhos e a vontade de falar connosco, ainda que não nos compreendamos?

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Em alguns locais existem lagoas à beira da estrada. Espelhos prateados, reflectindo o céu lilás e a enorme bola laranja em que o sol se transformou. As árvores e pássaros são silhuetas pretas à distância. Os mosquitos começaram o seu ataque diário, mas não nos movemos. Queremos absorver toda esta beleza. Gravá-la. Amanhã partimos para as montanhas. Continuamos a viagem. Chegou o momento.

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