Viajantes da Vida – Feliciano

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Combinámos no Largo da Severa. Eu cheguei tarde. Não vi ninguém que parecesse estar à minha espera. Ia ligar quando reparei num homem negro, sentado no umbral de uma janela pequena, no alto do prédio à minha frente. Perscrutávamos os dois o largo. Um aceno confirmou que nos encontráramos.

Vim falar com Feliciano porque o Jornal Comunitário Rosa Maria, para onde contribuo, vai publicar um poema seu. Uma vizinha soube que ele escrevia, falou com a associação e decidiu-se que a crónica deste número seria o poema com a biografia do autor. Voluntariei-me para tratar disso. Tenho um fraquinho por histórias de poetas.

Feliciano é da Guiné-Bissau. Veio para Portugal há 14 anos, vive na Mouraria há três, nesta casa de duas divisões, que dá para o largo. Serão 10 metros quadrados, se tanto, uma sala minúscula que abre noutra e a tal janela. Na ponta oposta, outra janela, fechada e com cortinas grossas para que não se veja para dentro, do pátio comum às outras casas. Umas escadas estreitas em frente à porta dão para o piso superior, um sotão que, saberei mais tarde, é um quarto e uma casa de banho. “Mais ou menos… Ainda tenho de fazer a casa de banho como deve ser. As minhas filhas vão começar a vir-me visitar, então tenho de ter tudo em condições. Elas sabem que sou pobre, mas mesmo assim querem vir”. Vivem com a mãe, na Costa da Caparica.

Na sala onde me sento, num cadeirão com uma almofada improvisada, existe uma mesa baixa, à minha frente, uma secretária, do lado esquerdo e por baixo da janela fechada e um sofá/cama do outro lado da mesinha, onde se senta Feliciano. A parede por trás dele está pintada de azul. Há frases pintadas também e uma miniatura de barco em madeira. Na sala do lado, que abre para esta há um móvel com algumas loiças, uma televisão no chão e pouco mais. A pouca luz vem toda da janela onde o avistei e da porta, que fica aberta.

“Fui eu que arranjei a casa toda. Estava em ruínas, havia um buraco no chão aqui onde estou”. Por isso não paga renda. Um acordo não oficial com o senhorio. “Ainda me tentou fazer um contracto  e queria que eu assinasse tudo sem ler. Disse-lhe para me deixar cá os papeis para eu ver se estava tudo em ordem…nunca mais apareceu”.

Então montou tudo. Rebocou as pardes, fechou os buracos, pintou, fez a instalação eléctrica. “É o meu trabalho. Assim soube fazer para mim. É muito bom saber fazer coisas diferentes, é uma mais-valia”.  Não me diz, e não pergunto se tem água canalizada.

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Na Guiné trabalhou dez anos como Observador Marítimo Especializado para o Ministério do Mar. “10 anos de Atlântico, em barcos de pesca. Fiscalizava, mas também ajudava no trabalho. Depois estive no departamento de estatística a informatizar os dados das capturas”.

Quando veio para Portugal foi para Casal de Cambra, para onde vão grande parte dos emigrantes Guineenses. “Foi lá que aprendi e comecei a trabalhar na construção, com os meus vizinhos. Mas enganaram-me muito, também. No inicio ficavam-me com quase todo o salário. Agora trabalho por conta própria”

Saiu da Guiné porque “não tinha liberdade para falar, nem viver a minha vida como queria. Não se pode viver sem liberdade.”

Entretanto também esteve em Madrid, 6 anos. “Ganhava muito melhor que cá. E trabalhei em hotelaria. Mas havia muita discriminação e a policia estava todo o tempo a parar-nos na rua a pedir os documentos. Portugal é mais tranquilo.”

Quando voltou veio para a Mouraria. Sente-se aqui bem. “Em Casal de Cambra eu olhava para os meus compatriotas e aquilo era uma tristeza. Muitos bebem, não procuram trabalho. Todos dizem mal uns dos outros. Aqui ninguém me chateia, faço a minha vida tranquilo.” Gosta de viver num sitio histórico e que as pessoas sejam afáveis. Sente-se bem-recebido.

E a escrita?

“Já gostava de escrever as minhas coisas. Lá na Guiné decidi ir fazer um curso de Literatura Moderna, depois do trabalho. Foi aí que entendi que escrever mexia com qualquer coisa cá dentro. É uma coisa que não sei explicar bem.” Desde que saiu da Guiné que tem enchido cadernos de poemas. Estão ao seu lado, no sofá/cama. Cadernos A4, pretos, cheios de folhas soltas. Folheia-os enquanto fala comigo. “Também tenho uma novela, que comecei lá em Espanha. Mas ainda não está acabada. Tenho de lhe dar a conclusão certa, e isso não é fácil.”

Passamos então aos poemas. Dita-me o que vamos publicar, porque não percebo a sua letra. Chama-se Emigração.

Fico aflita. Há palavras que não percebo, outras que não me parecem correctas. “Altera, se achares que não está certo. É o Português que às vezes não me sai bem.” Fazemos três rondas de leitura para ir tirando dúvidas. No fim não sei o que pensar. No meio de palavras que não existem e tanta coisa que me parece quase infantil, há versos como “É estar pendente do mundo da indiferença/ É vestir a capa da tartaruga/Conter a erosão maligna/das ondas” ou “fui escravo sem dar conta/salário incompatível”.

Pergunto-lhe se não quer voltar à Guiné. “Ainda não. Tenho lá muitos túmulos que não quero ver”. O irmão morreu há uns anos. Era director-geral de um qualquer serviço que Feliciano não me sabe explicar. “Tenho 12 sobrinhos e agora tenho de os ajudar. Mando dinheiro. E uma casa grande, que construímos os dois lá.E sei fazer muita coisa agora, podia ter uma boa vida. Mas ainda não é altura de voltar.” Não confia nos políticos. “Está melhor do que era, mas ainda não está bom. Se continuamos assim vamos morrer todos. E a Guiné tem tudo, mas estão a estragá-la.”

Depois de duas horas de conversa, tenho de me ir embora. Feliciano acompanha-me à rua e despede-se com um abraço. “Vamos falando Filipa. Obrigada!”

Caminho para casa meio abananada. Que vidas são estas que se cruzam connosco na rua todos os dias, sem que saibamos. Quanto está para além de um aspecto físico, de uma fisionomia, de uma cor, de uma nacionalidade, de uma profissão?

Sinto que estes poemas valem mais pela história por detrás deles que pela escrita em si, mas quem sou eu para emitir juízos sobre a escrita dos outros? Pergunto-me como seria se Feliciano escrevesse em crioulo. Será que é essa a barreira que lhe transforma a escrita? E porque é que eu estava à espera de mais? De diferente?

Não tenho respostas. Mas sei que este homem passou pelo que eu nem sequer imagino. Sei que essas palavras lhe saíram de dentro, e lhe deram se não força, pelo menos alívio para continuar um caminho, uma viagem à qual se forçou, por circunstâncias alheias à sua vontade. E eu, que viajo e que escrevo por opção minha, em total liberdade, só lhe posso tentar prestar a  homenagem que merece, da maneira como sei. Contando a sua história.

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(Leiam o poema na próxima edição do Rosa Maria, em Junho)

 

 

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