Diários do Kilimanjaro: Dia 1

Shira Camp II : 3850 m de altitude

Andámos 12 kilómetros. Só 450 metros de desnível acumulado em caminhada, mas viemos dos 1800m. Hoje é para levar com muita calma. Hoje e sempre, disse-nos Baraka, o nosso guia principal. Pole Pole, devagar, como se diz por aqui. Sinto-me bem.

Começámos a andar depois de um piquenique na última entrada do parque onde os carros podem chegar, a  3400m de altitude . O condutor deixou-nos com um “Good luck. See you on the other side”. O vento fazia-nos voar os amendoins que estavam dentro da caixinha do almoço. Guardei-os, junto com o chocolate, para mais tarde. Na excitação do momento, fome era coisa que não tinha. Mas comi, e bebi. Baraka fez questão de nos reforçar a importância de nos mantermos com reservas de energia, e beber muito mais água que aquela que temos vontade. Para ajudar com a altitude. E deu-nos o comprimidinho de Diamox que nos vai entregar todos os dias, duas vezes ao dia. Também para a altitude.

Depois de uma hora por uma estrada de terra em planalto, algo aborrecida passado o entusiasmo inicial de estarmos a começar, começámos a subir entre as pedras e arbustos. Nada muito íngreme. Até soube bem a mudança de cenário e ritmo. A paisagem é bastante desolada nesta zona de charneca. A humidade, altitude e temperatura não dão para muito mais que arbustos e árvores rasteiras, mas as cores são magníficas. Verdes vários, amarelos e lilás da urze, a terra vermelha.

Quase a chegar ao campo, vimos a primeira Senecia. “ Kilimanjaro tree”, diz Joseph, o segundo guia. O dendrosenecio kilimanjari parece um híbrido entre um cacto e uma árvore. Na verdade, é uma planta carnuda gigante. É típica desta região. Hoje, vemos apenas uma, isolada, ao pé de um riacho. Apesar de gostarem da altitude, distribuem-se mais ao longo dos vales, junto a fontes de água. Vamos perceber isso nos próximos dias. Hoje, ficámos felizes com esta amostra.

Há muita gente no campo. Quando chegámos, já tinhamos tudo montado. Os carregadores e cozinheiro começaram a andar pouco antes de nós, mas chegaram muito mais rápido. Olhando à volta, confirmo que escolhi bem a empresa. As nossas tendas North Face amarelas parecem  melhores que o que nos rodeia, e a tenda das refeições é-o claramente. Muito espaço e janelinhas para ver as vistas. Todo um luxo de acampamento, dentro do género. A mesa está posta, com uma toalha aos quadrados, há pipocas acabadas de fazer, e água quente para chá ou café. Até ao fim, não vamos deixar de nos surpreender com tudo o que nos dão de comer.

Percebemos nessa altura que temos uma espécie de mordomo. O Livingstone não é só carregador. É ele que monta a tenda das refeições, traz a comida, e está encarregue de nos manter quentes, limpos e hidratados. Todos os dias, antes do pequeno almoço e do jantar, coloca três alguidares com água quente em frente às tendas, e antiséptico para lavar as mãos.  Todos os dias, três vezes ao dia, garante que os nosso cantis estão cheios. Todas as noites nos traz botijas de água quente para levarmos para dentro dos saco-cama. Todos os dias tem um sorriso e uma delicadeza que nos derrete.

Neste primeiro dia, nem percebemos bem o que nos está a acontecer. Parecemos miúdos na consoada ao receber estes mimos. Não sabemos muito bem o que fazer connosco mesmos, enquanto esta equipa de 15 pessoas faz tudo por nós. É uma sensação estranha. Sabemos que este é o trabalho deles. Sabemos que o mais certo é eles não quererem conviver connosco, puderem falar à vontade na língua deles, entre eles, fazerem piadas sobre nós se lhes apetecer. Mas não conseguimos evitar um sentimento de culpa neo-colonialista ao estar sozinhos na tenda a beber chá, enquanto somos servidos. Ao não partilhar as refeições, nem com os guias. Perguntamos-lhes se não querem sentar-se connosco, recusam com um sorriso. É o que é.

Não insistimos. Contentamo-nos com a alegria do Livingstone ao perceber que o Aitor é espanhol, e que pode practicar um pouco. Consegue uma pronúncia quase perfeita, e não se esquece de palavra nenhuma de uns dias para os outros. Diz-nos que tem estado a aprender sozinho, num inglês que também é muito superior ao da maioria. Uma caixinha de surpresas, o Livingstone.

Quando chegámos, tinha começado a chover. Ficou tudo cinzento, e não percebíamos o que nos rodeava. Quando estávamos a começar a jantar, percebemos uma luz mais forte e abrimos a janela da tenda. À nossa frente para a direita, a cadeia de picos Shira, a contra luz. A neblina a subir entre eles. Mais ao longe, o laranja do sol a pôr-se atrás do monte Meru.

O Kilimanjaro é um antigo vulcão. Visto de longe, parece uma montanha isolada, no meio da savana africana, mas é na verdade constituido por três picos, todos resultado da actividade vulcânica. A Oeste, o Shira. É o mais antigo e tem um aspecto serrilhado. A Este, o Mawenzi, que apenas vamos ver no dia da ascenção. Entre os dois, Kiba. É na borda da cratera deste que está o pico Uhuru, o ponto mais alto de África a 5985 metros. O sítio onde queremos chegar. Dos três, é o único que não está extinto. Está dormente, disse-me o Joseph. É sempre bom saber isso enquanto nos dirigimos para lá, mas a última erupção foi há 360000 anos. Era muito azar.

Jantámos sopa de legumes, tilápia frita com batatas fritas e legumes, salada, abacate, pão e fruta para sobremesa. Justine, o cozinheiro, excedeu-se. Irá fazê-lo sempre. Não queríamos crer na quantidade e sabor da comida, nem no olhar desapontado do Livingstone quando não conseguimos dar cabo de tudo. Viria a tornar-se uma rotina diária, e nunca deixámos de nos surpreender que trouxessem tudo desde a base, desde o primeiro dia.

Depois de jantar, outra rotina bi-diária: Baraka ou Joseph com um questionário médico. Apontavam dores de cabeça, vómitos, escala de disposição geral de 1 a 10, toma do diamox, toma de outra medicação. Mediam a oximetria de pulso e os batimentos cardíacos. Nunca tivemos problemas para além de uma ligeira dor de cabeça, de vez em quando, mas estes cuidados descansavam-nos.

Acabo de escrever já dentro do saco-cama, à luz do frontal. As últimas frases no meu caderno “Gosto tanto de estar aqui. Gosto tanto de me continuar a desafiar. Gosto tanto deste mundo com tanto para ver, que me continua a surpreender tanto”.

Tenho a botija aos pés, a espalhar calor. Espero não ter de ir lá fora fazer xixi durante a noite. São oito e meia da noite. Apago a luz.

2 thoughts on “Diários do Kilimanjaro: Dia 1

  1. “Gosto tanto de estar aqui. Gosto tanto de me continuar a desafiar. Gosto tanto deste mundo com tanto para ver, que me continua a surpreender tanto”. É isso mesmo 🙂 Venham os outros dias! Beijinhos (da Argélia)

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    1. Entendes, não é? 🙂
      A trabalhar neles (mas com equipamento pouco cooperante…). Obrigada por continuares a ler!
      Beijinhos (de Goa)

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