Talvez não soubéssemos exactamente ao que íamos. Subir pelo canal de Trea não é brincadeira. Mas, se soubéssemos, talvez não tivéssemos subido, portanto, melhor assim. Recuperados os joelhos e as costas, ficam as memórias em tom de verde vale, cinzento rocha, azul céu e branco neve. Fica o som do vento e das vacas ao adormecer. Ficam as asneiras e gargalhadas dos companheiros que calharam em sorte no caminho e ao jantar. Fica o orgulho da superação, a aprendizagem da humildade e respeito à montanha. E fica a vontade de voltar, e superar.
A ideia inicial era fazer o Anillo Vindio, uma rota circular no maciço ocidental dos Picos de Europa. Seriam 4 dias. Mas o inverno foi duro e longo e nós não somos montanheiros batidos nem preparados. A rota estava ainda cheia de neve, apenas transitável num dos tramos com material e experiência que nós não temos.
Ficámo-nos por dois dias, misturando rotas. Partimos de Posada de Valdeón, fazendo o primeiro dia do Anillo: Posada, Caín, Ruta del Cares, Canal de Trea, Collado de las Cruces, Vega de Ario. Dormimos no refúgio e, depois de apanhar a Ruta de la Reconquista, descemos pelo Canal de Culiembro, de volta a Caín. Quinze quilómetros por dia não parece nada, mas o desnível acrescenta alguns pontos a essa história. No entanto, as histórias que ficaram foram outras.
Os autobuseros montanhistas
Viemos intercalando caminho Canal de Trea acima. 1200 metros de desnível em três quilómetros unem gente boa.
Eram cinco. Não cheguei a saber o nome de todos. Havia o Jesús, o mais experiente e o que vinha mais morto, para espanto de todos. Trabalhou até à meia noite e veio directo de Madrid. Seis horas de carro, zero de sono. Era a terceira vez ali, sabia o que o esperava. “Me cago en mi puta vida” ouvimo-lo dizer, montanha acima. As pernas a falhar, o corpo quase a ceder, mas a continuar. “Ya casi” íamos dizendo uns aos outros, com mais ou menos convicção.
Se não fossem eles desconfio que não tínhamos subido aquela cascata. Chegámos antes, e não se via caminho. Jesus garantiu que era por ali, mas que havia mais água que o habitual. Numa manobra de “escalagem”, subiram dois e o Borja pelas rochas do lado direito. Eu fiquei presa numa fenda, a mochila a bater na pedra e a impedir a subida, as pernas a começar a ceder. Acho que estiveram perto de me empurrar pelo rabo, mas não chegou a tal. Desencaixei-me e subi.
Já no fim do canal, chegámos ao Collado de las Cruces à frente deles, deixámos de ver as marcas e achámo-nos perdidos. Sabê-los atrás de nós, ouvi-los a chegar ao longe, deu-nos alguma tranquilidade. Ainda que estivéssemos a cinco metros do caminho e o tivéssemos encontrado antes deles nos alcançarem.
“Foda-se, por aí?” disse o Borja a olhar para o caminho na rocha, da largura de um pé, a cair quase na vertical para um lado. Entre isso e o relativamente à vontade que me sentia com a dificuldade da subida (ou seja, consciente do normal que era o meu sofrimento e capaz de medir o esforço), apercebi-me que já vou tendo algum traquejo nestas caminhadas. E os nossos companheiros a dizerem “Vas tirando bien”. Se calhar admirados de ver uma mulher à frente de um homem de 1.90m com pernas gigantes. E eu também surpresa, depois de os saber a todos condutores de autocarros em férias ali. Todos a combater os estereótipos uns dos outros.
Os prejuízos que temos sem que nos demos conta! Porque é que me surpreendeu que aqueles cinco homens de meia idade fossem condutores de autocarro em Madrid, mas também fossem montanhistas experientes? Que eles sim viessem preparados com cordas, crampões, piolets, GPS e walkie-talkies para completar o Anillo? Porque é que isso me parecia incompatível com a sua profissão? Eu, que sei tão bem que a nossa profissão não nos define. Não sei. Mas sei que gosto sempre de conhecer gente que me mostra e combate esses prejuízos.
No Collado de las Cruces percebemos que o pior da subida estava feito. Olhando para baixo, víamos bem a inclinação do que acabáramos de subir, e como a vegetação vai desaparecendo com a altitude, o verde a dar lugar ao cinzento. Em frente, do outro lado do vale do Cares, os picos do maciço central brilhavam ao sol. Se por mais nada, só pelas vistas valia a pena estar ali.
Fizemos juntos o último quilómetro até ao refúgio, por cima de lapiás que acumulavam neve em algumas das fendas, e depois pela erva que cobre o prado onde ele se destaca. Ver aquela casinha ao longe, rodeados pelo badalo das vacas, trouxe um sorriso a todos.
Cinco estrelas
Quando se pensa em caminhadas em autonomia, ter um refúgio já é um luxo. Não ter de carregar com tendas, e poder dormir dentro de paredes permite um descanso extra, valorizado. Quando se pode contar também, querendo, com uma refeição quente e abundante à volta de uma mesa repleta, fica a fasquia elevada para as próximas vezes.
Em Vega de Ario, Pedro, o guarda do refúgio, tratou-nos como reis. E no jantar partilhado reforçámos a camaradagem com os companheiros de subida. Histórias de outras andanças, partilha de momentos do dia a dia e muita gargalhada. Jesús, já recomposto, trouxe a garrafa de Crema de Orujo que carregou na mala e serviu toda a gente. Três litros extra de peso, porque a experiência também se faz dos pequenos luxos.
Tudo o que sobe tem de descer
Saber que não tínhamos de descer pelo canal de Trea foi meio caminho andado para começar bem o dia. Com as indicações precisas de Pedro não foi muito complicado chegar a Vega Maor para apanhar a Ruta de la Reconquista. Daí, estaria o caminho bem marcado. Ou isso achávamos.
Uma Vega é um prado, num vale. Vega Maor está bem encaixado entre a rocha, numa explosão de verde. Por ali passam pastores, que chegam desde Covadonga pela Ruta de la Reconquista. Vimos alguns currais básicos, casas de pedra e 3 burros amarrados e comunicativos, mas nenhuma pessoa. Na descida desde o refúgio fomos assistindo à dança dos pássaros em bando contra um céu que se mantinha limpo. Tinham-me falado muito das névoas dos Picos, que chegam de repente e abafam tudo, mas, até ali, só azul. Depois de apanharmos a sinalização da rota, atravessámos o prado e fomos sair entre duas paredes de rocha, onde começava a descer.
Aí sim, percebi. Em cinco minutos estávamos metidos numa nuvem, que vimos rolar na nossa direcção. Preferia a visibilidade total, mas aquele ambiente também lhe dava encanto.
Seguimos um trilho que parecia óbvio de tão bem marcado. Demos de caras com um grupo de vacas e um boi enorme que insistia em ficar parado mesmo no caminho, ora a pastar, ora a olhar para nós. Não sei muito bem qual a docilidade daqueles bichos e aquele metia respeito. Fomos parando e avançando ao ritmo dele, mantendo uma distância de segurança, mas percebemos, ao chegar a um precipício, que se calhar não era por ali.
O mapa não era bem claro e havia dois ou três trilhos no chão. Provavelmente mais caminho de vacas e pastores. Perdemos algum tempo, mas lá demos com os sinais da rota. Meia hora depois, o mesmo. As marcas desapareceram, viam-se trilhos vários que se juntavam e a névoa cada vez mais densa. Estávamos bem de tempo, mas confusos. Parámos a comer qualquer coisa e descansar um bocado e eu fui explorar alguns dos trilhos a ver onde iam dar. O GPS não se decidia sobre onde estávamos realmente e dava-nos como muito desviados da rota, mas não entendíamos como é que isso tinha acontecido. Confesso alguma tensão. Não gosto de me sentir perdida e aquela névoa toda começava a assustar-me. Mas sentia-me bem fisicamente e, depois de alguns zig-zags nos trilhos, lá percebemos que iam todos dar ao que parecia o caminho. Confirmou-se. Suspirei de alivio quando vi as manchas branca e vermelha pintadas no muro que íamos atravessar.
Daí para a frente, foi sempre a descer. Primeiro suavemente, por trilhos na erva até chegarmos ao canal de Culiembro.
A partir daí, 700 metros de desnível num quilómetro, em cascalho e pedras soltas. Nada para os dois gajos do trail que passaram por nós quais cabras montesas a saltitar e deslizar por ali abaixo. Se os vimos dois minutos, foi muito. “Eles não vão carregados”, disse o nosso orgulho ferido.
Os últimos quilómetros pela Ruta del Cares de volta a Caín foram já terreno conhecido.
Tínhamos, sem saber que fazia parte da nossa rota, percorrido o desfiladeiro todo no primeiro dia nos Picos.
Nesse dia apreciámos melhor a imponência daquela obra de engenharia (a rota foi criada na lateral da montanha aquando da construção de um canal de água para uma central hidroeléctrica), o seu entrosamento na rocha e a beleza da água verde translúcida do rio Cares.
Desabada na pousada em Caín, enquanto o Borja ressonava uma sesta, pensei em qual seria o apelo da montanha e das caminhadas, para além das vistas. E escrevi isto:
É o misto de superação e humildade. Até os ciclistas com pernas de aço sucumbem à sua vontade. E, no entanto, vai-nos deixando avançar sempre. Mais depressa ou com mais vagar, progredimos. Ela nivela-nos e reduz-nos à nossa pequenez. Ela eleva-nos acima das nuvens – e de nós próprios – antes de nos aplastar com subidas e (principalmente) descidas terroríficas. E quando chegamos cá abaixo, depois de termos estado acima de tudo, apesar do corpo batido e do orgulho machucado, sobra-nos o respeito e o deslumbre. E a vontade de subir uma vez mais.