Foi mais difícil a ideia de ir, que o ir. Pensar em pedalar de alforges, por trilhos, durante vários dias, sem treino nenhum, numa bicicleta que tinha usado uma vez. “Não tens mesmo juízo nenhum”, ia pensando. Mas depois, não foi (assim tão) difícil. Menos quando choveu e eu ia caindo num canal. Nessa tarde disse algumas asneiras.
Partimos de Lisboa, mas o percurso foi Tróia – Sagres. Chegar a Tróia é passeio, mas foi logo aqui que caí. A dez minutos de casa. Parada num semáforo. Vá, a parar. Em minha defesa, nunca tinha andado com alforges carregados. E só conta como queda porque fui com as mãos ao chão, e porque houve sangue. Arranhei o tornozelo no pedal, e o orgulho na expressão do Borja. Doeu-me mais o arranhão no orgulho, mas cicatriz só a do tornozelo .
Até Tróia, comboio, almoço de choco frito em Setúbal, ferry e eu a habituar-me a estar em duas rodas. Daí à Comporta foi tudo estrada tranquila, cabelos ao vento e a confiança a aumentar.
Tão pouca era a distância para esse dia que fomos passear à Carrasqueira, ver o cais palafítico. A minha aselhice serviu para que o Borja, que já fez este percurso com várias variações (mas sempre mais rápido) ir conhecer sítios por onde passava sempre a correr.
Entre o caminho e as voltinhas, 30 no conta-quilómetros ao fim do dia.
O melhor do segundo dia foi o início e o fim. Sete quilómetros pelos arrozais, na luz da manhã. Tudo a direito, verde erva, dourado sol, reflexos na água dos canais e cegonhas a voar baixinho. O calor só apertou já no alcatrão dos restantes 28km, mas chegámos ao parque de campismo da Galé tranquilamente. Montada a tenda debaixo dos pinheiros, a tarde passou-se entre a falésia e a praia. Já me tinham gabado este parque, confirmo-lhe os atributos (principalmente nesta época, quase vazio).
Ao terceiro dia começámos a pedalar mais a sério. Tínhamos pensado parar na Ilha do Pessegueiro, mas estávamos os dois mais confiantes nas minhas pernas (e jeito) e decidimos ir até Vila Nova de Milfontes. 76 km.
Apontámos para estar em Sines à hora de almoço e dizer olá a um dos meus viajantes da Índia. O Luís tratou de nós como reis e custou arrancar de barriga cheia, mas depois do susto inicial de ver um 37 à frente da placa para Milfontes, fez-se melhor a tarde que a manhã. A beleza do caminhou ajudou. Muito menos estrada, o mar à vista, estradões e trilhos sossegados sem grandes obstáculos. O céu fazia duvidar das previsões de tormenta para o dia a seguir.
De manhã, continuava difícil de acreditar. Até ao Cabo Sardão seguimos por estradas agrícolas, entre canais de rega e pastos com vacas espantadas, tudo brilhante de orvalho.
Pelo meio, treino intensivo a ultrapassar poças (quase charcos!) e a pôr o pé na lama quando a falta de confiança vencia. Foi coisa que foi melhorando.
O caminho do Cabo Sardão à Zambujeira é fenomenal. Já o tinha feito a pé e estava desejosa de fazer neste novo ritmo. Quis o São Pedro que não o conseguisse apreciar decentemente.
Eu sei que não me dissolvo, mas definitivamente, andar à chuva não é a minha praia. Mais ainda quando a areia se começa a transformar em lama, as pedras ficam molhadas e eu estou em duas rodas. Apreciei pouco a vista, mas foi mais um desafio conquistado.
Chegando à Zambujeira para almoçar, sequei o humor de cão junto com as meias num banquinho ao sol. O tempo passou o dia a fazer-nos manguitos e dar-nos sol quando tínhamos tecto e chuva quando íamos a descoberto. Terapia de choque à minha embirração meteorológica. Sol à saída da Zambujeira, sol a pedalar ao lado dos canais de rega depois de Brejão (ok, esta parte foi boa), sol a mais a empurrar as bicicletas na subida interminável de Odeceixe e, na segunda ronda de canais, caiu-nos o céu em cima.
Portanto, lama, buracos, espaço apertado entre a vedação e o canal e eu quase sem ver com a água e o vento nos olhos. Mandei com o pedal nos tornozelos várias vezes, praguejei como uma mulher do Norte e estive a milímetros de me atirar para dentro de um canal quando o pneu se prendeu numa fenda de terra dura e eu (quase) perdi o controle da bicicleta. No meio do dilúvio, nem me congratulei a mim mesma.
Enquanto eu respirava fundo várias vezes, o Borja ia à frente. Na minha cabeça, a pedalar alegremente porque “os galegos não têm medo de se molhar”. Mas se calhar a parte do alegremente foi só na minha mente rabugenta da chuva, que não parou até chegarmos a Aljezur.
Resumindo, chegámos ensopados e enlameados como verdadeiros BTTistas. Foram os 68km mais duros da viagem. Eu, não sabia se me orgulhar de mim ou enrolar-me em posição fetal e dormir durante dois dias. Deixei ficar o orgulho, que era merecido, adormeci a dor no rabo e nos pulsos com uma garrafa de tinto e deixei a posição fetal para só essa noite, que no dia seguinte havia mais caminho.
Sair dos lençóis foi duro. Começar a rota a empurrar a bicicleta no empedrado com uma inclinação de 20% também não era auspicioso, mas pelo menos não chovia. E não é que, apesar do humor matinal, das dores no rabo, dos dedos da mão direita a ficar dormentes de vez em quando, o quarto dia foi um dos meus preferidos? Subimos e descemos por trilhos no meio de pinheiros, o chão de terra vermelha, ninguém à vista, eu a fazer slalom entre as poças, já (quase) sem travar.
No meio do nada, um baloiço pendurado numa árvore foi o sítio perfeito para uma pausa e para eu pensar na improbabilidade daquilo, e do bem que já me estava a sentir.
Chegámos às falésias e o azul entrava pelos olhos dentro. A caminho da Carrapateira, onde almoçámos, desci por trilhos com pedras que não me atreveria a descer em cima da bicicleta uns dias antes. Devagar, muito devagar, com cara de pânico de quando em vez, mas desci.
Depois da praia do Amado, subimos e descemos por montes e vales cobertos de verde, amarelo e lilás, e eu suava e sorria, a pensar “estou mesmo a fazer isto”.
Já nem me lembrava dos lençóis da manhã. Podíamos ter seguido até Sagres. Tínhamos feito só 42 km e tínhamos tempo e pernas.
Mas decidimos ficar por Vila do Bispo. Acabar o dia numa nota positiva, e chegar ao destino final no dia seguinte, tranquilamente, aproveitando o caminho.
Assim fizemos. Ter tempo permitiu-nos ficar dentro de portas enquanto chovia outra vez, e arrancar só com umas pingas, mas a ameaçar melhoras. Quando parámos, depois de um desvio para espreitar o Mirador da Torre da Aspa, já o céu se deixava ver bem e o sol iluminava as praias da Cordoama e Castelejo lá em baixo.
Valeu bem o desvio (que na verdade não foi nada). Vista panorâmica para as falésias e toda a costa que vínhamos a contornar há 5 dias. Daí para a frente começámos a ver o farol do Cabo de São Vicente a espreitar de vez em quando. Tinha vontade de chegar, mas também de continuar a apreciar o trilho do pescador, que nesta zona é ainda mais incrível, mar e falésias, areia e campos, numa mistura de aridez e azul, este ano com mais verde que o costume.
A minha placidez durou pouco. O Borja deve ter achado que eu estava realmente mais confiante nas minhas capacidades, porque meteu-nos pela parte do caminho que me tinha dito que ia evitar.
Primeiro a descer com pedras à beira do precipício, e depois a ter de acartar com a bicicleta encosta abaixo e encosta acima numa zona intransitável em duas rodas (com direito a escadote, para duas pernas, e tudo).
Ele não viu, mas desci tudo o possível em cima da bicicleta, numa demonstração de habilidade (e terror) que me espantou a mim mesma. O que ele sim viu, foi que me atirei para cima de uns picos porque me apareceu um caminhante no caminho já no fim da descida. O momento de glória ficou só para mim.
Daí ao Cabo de São Vicente, e de lá a Sagres foi um tirinho de estrada.
Estava feito. A quantidade de gente (turistas) manchou um bocadinho o momento, confesso, mas nesta, como em todas as viagens, o que conta é o caminho. Mais ainda quando é como esta nossa costa. Mais ainda se nos desafiamos.
No fim desse dia escrevi ”Somos sempre tão mais capazes do que imaginamos. Tenho aprendido isso ao longo dos desafios a que me proponho. Não que seja a pessoa mais aventureira do mundo. Na verdade, sou uma maricas disfarçada. Tenho medo, mas vou. Assusta-me, mas faço. Sai-me primeiro o ‘bora e só depois o porquê??” E então vou, e faço, e chego. Um susto, um passo, uma pedalada de cada vez. E não é que tenho chegado sempre?!”
A maricas aselha pedalou 297km, e chegou mais uma vez.
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A maior parte das fotos que aqui aparecem são do Borja. E foi ele também o “autor” do percurso que fizémos. Eu limitei-me a seguir. No blog dele ( este ) têm as várias rotas por aqui que ele já fez (e outras em vários lugares), e podem também acompanhá-lo no Instagram .