O descanso foi providencial. Nada de dores quando arrancámos pela Rota do Carvão. Diz a descrição da rota que “ao percorrer o andar basal, intermédio e superior da Serra, o trilho apresenta uma enorme variedade de vegetação e fauna. O salgueiro-branco, o plátano-bastardo, o cervum, a consolda-vermelha, o jacinto dos campos, a faia, o castanheiro e o carvalho-negral compõem parte do conjunto da vegetação. Realça-se o valor da tramazeira, do zimbro e do vidoeiro, devido à sua raridade em Portugal”.

Eu, ignorante no que toca a flora me confesso. Notei sim a diferença entre o porte das árvores do início da rota, para os arbustos depois de subirmos acima dos 1000m. Notei, com pena, o predomínio de pinheiros e as muitas árvores queimadas nesse caminho florestal mais baixo.

Notei o contraste do cinzento do granito com o verde e amarelo da vegetação que se fechava à nossa frente no trilho apertado que empina em direção à Nave da Mestra. Notei as mariolas estrategicamente colocadas, que são orientação e paisagem.

O caminho desempinou chegados à Lage do Gamão. Nesse planalto amarelo, o vento rugia e o granito começava a ser rei com precipícios coroados por cabeços e fragas.

Não sei o que tem o vento para mim, que me emociona. Mais ainda num sítio isolado como aquele. Respirá-lo, saber que é também pela sua força que muitas daquelas pedras foram esculpidas e estar ali pelo meu próprio pé, mais bolha menos bolha, confirmou-me o privilégio e a responsabilidade de poder aproveitar esta natureza tão rude como bela. Parei a deixar-me envolver por ele, enquanto olhava para o Vale Glaciar do Zêzere, de onde tínhamos vindo. Comovida e feliz, segui depois por entre o zimbro até à Nave da Mestra.

Um vale glaciar acima de um vale glaciar são várias camadas de história geológica. Esta nave (vale), a da Mestra, acrescenta ainda a história do juíz que ali decidiu construir uma casa na pedra. Como bem comprovámos, de Manteigas ali só a pé e foi a pé e em mulas que vieram as pessoas e os materiais para a fazer. O telhado é um pedregulho gigante que foi levantado por macacos hidráulicos e ali continua, desde 1910.

É uma curiosidade interessante e seria bom abrigo em caso de mau tempo ou pernoita, mas o vale vale a passagem por si só. Um chão amarelo e verde ondulante rodeado por blocos de granito cinzento contrastantes e imponentes.

Aproveitámos a pausa de apreciação para descansar as costas das mochilas e comer e seguimos caminho contornando o bloco da Talisca da Mestra. Atravessar esta fenda ficará para uma próxima vez. Quase sempre em cima do granito apanhámos o trilho que desce para Vale do Rossim. Não está tão bem marcado, mas está no gps, vão aparecendo marcas esporádicas e há, suspeito, várias maneiras de o fazer.

Fomos descendo e avistando mariolas, descendo e avistando mariolas e a coisa fez-se bem.

Às tantas já os dedos e os restos de bolhas acusavam os 18km e ir a travar com os pés em cima da pedra. Mas, passado este tempo, o que retenho mesmo é a vista para as Penhas Douradas, que deixámos para a direita ao sair da Rota do Carvão e o espelho de água em frente, da barragem do Vale do Rossim onde íamos chegar.

O fim do dia pintou tudo de dourado e azul. Mas andávamos atentos às previsões metereológicas e já sabíamos que o dia seguinte ia ser de muita chuva. Prevendo o meu mau génio debaixo de água, e a nossa falta de material e preparação para os terrenos muito escorregadios que nos esperavam daqui para a frente decidimos fazer uma pausa e dar um luxo.

Dormimos na tenda à chegada ao vale do Rossim e alugámos um yurt para o dia seguinte. Quando acordámos, e porque parecia que não chovia assim tanto, caminhámos até à estrada nacional para abastecer de sandes de presunto e queijo da serra. Desabou-nos o céu em cima à volta, mesmo a tempo de entrar no yurt e ter direito a aquecedor e duche. Passámos o resto do dia a ler e a ver a chuva cair e demos por muito bem gasto o investimento.
Tinhamos planeado arrancar às 7h30m da manhã. Ao despertar, a claraboia do yurt continuava pingada com chuva e o vento rugia, contra todas as previsões. Vontade de sair, zero. Aguardámos, mas não melhorava. Como vem sendo hábito na nossas saídas, eu digo mata o Borja diz esfola e vamo-nos empurrando para fora de pé, ali onde vencemos os medos ou só a mariquice, que era o caso.

Arrancámos no meio do nevoeiro, entre as pingas e passado pouco deixou de chover. Cruzámo-nos com algumas pessoas, na parte que liga a Lagoa comprida (onde se pode chegar de carro) ao Covão dos Conchos , mas no resto do caminho continuámos exploradores isolados, com os pés molhados. Trilhos muito estreitos e mato denso a brilhar que descarregou a sua carga nos primeiros a atravessá-lo esse dia, nós. Cada passada uma chuveirada.

Fizemos 17km, do Vale do Rossim à Torre. Atravessámos o Vale do Conde e o Vale da Barca, parámos nos Conchos, mas não vimos o buraco, seguimos até à Lagoa Comprida num desvio para a apreciar de longe e subimos, às vezes agarrados às pedras, às vezes escondidos pelos arbustos, ao lado das Lages da Lagoa Comprida até ao cume, a 1700m.

Daí, um prado que fazia lembrar a estrada dos tijolos amarelos entregou-nos à Rota do Maciço Central onde saltámos os pedregulhos entre charcas em direcção à estrada para a Torre.

Num dia de beleza incrível, aquele cume com centro comercial pode ser um anticlímax, mas estávamos na Serra da Estrela. Tinhamos de chegar ao ponto continental mais alto do país pelo nosso pé. Estava já ali.

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