Turismo d’Aldeia e as Linhas do Tempo

Na pequena aldeia de Murça do Douro, há um bairro especial. Na Rua do Casal, o “bairro” com o mesmo nome foi criado com o objectivo de recuperar o património rural da aldeia, integrando-o com a arte de bem receber.

O Bairro do Casal são 5 casas tradicionais de xisto, alugadas individualmente, que rodeiam um jardim e uma piscina com vista para os socalcos circundantes.

Fomos recebidos pela Odete, uma das donas deste Turismo d’Aldeia, que nos mostrou a nossa casa e nos pôs imediatamente à vontade. A actual situação obriga a cuidados de higiene redobrados e mudanças de funcionamento, mas a experiência não perde na hospitalidade. Ganha até novos contornos de vida de aldeia. Por exemplo: o pequeno-almoço passou a ser feito em cada casa, individualmente e não nas áreas comuns. A cozinha está equipada e o frigorífico e prateleiras abastecidos com tudo o necessário, que é reposto diariamente. O pão é entregue cada manhã, quentinho. Um bater à porta sinaliza o saco de pano a fumegar, pendurado na maçaneta, a fazer lembrar os tempos em que o padeiro apitava à passagem pelas casas.

No móvel da sala, um pequeno quadro de ardósia tinha pintada a giz a mensagem personalizada de boas vindas. Ao seu lado o vinho fino de Murça com dois copos, para o “porto de honra”. Difícil é não nos sentirmos especiais.

Depois do brinde, inaugurámos a piscina e deixámo-nos estar até o sol desaparecer.

Petiscámos o queijo e enchidos que tínhamos trazido de Vila Nova de Foz Côa, com o vinho local que está disponível para compra na casa e adormecemos consolados, embalados pelo silêncio.

Demorámo-nos no primeiro pequeno-almoço, sentados na varanda, virados para as linhas geométricas das oliveiras e vinhas circundantes e com a piscina a reluzir na luz da manhã. A manteiga derretia-se no pão quente, o sumo de laranja refrescava, os doces de fruta eram de lamber os dedos e o café acabado de fazer empurrava o bolo caseiro na perfeição. Foi um esforço hercúleo vencer o diletante em nós, que se queria entregar à espreguiçadeira na piscina. Seria muito fácil.

Na aldeia passa-se pouca coisa, mas num raio de 20 quilómetros há muita história e paisagem a conhecer. Nós já vínhamos apaixonados pelo Parque Arqueológico do Vale do Côa (sobre o qual falarei noutro texto), que se visita bem com o Bairro do Casal como base. Avançando desde o Paleolítico das figuras rupestres, continuámos a traçar a linha do tempo da ocupação deste território.

Nas ruínas do Prazo encontra-se uma Vila Romana, que remonta ao século I e ao início do século V d.C., mas há também vestígios pré-históricos dos períodos paleolítico, mesolítico e neolítico e da ocupação posterior aos romanos. Sozinhos, deslumbrados por aquele património que desconhecíamos e pela sua envolvente de socalcos agrícolas e trilhos de calçada, percorremos as pedras milenares. Sinto sempre qualquer coisa de reverência por estes blocos que atravessaram eras e foram refúgio de gerações tão distintas. Que estórias terão testemunhado ao longo da história de que são agora testemunho?

A vila de Freixo de Numão, sede da freguesia onde se insere Murça, foi outra surpresa. Construções preservadas, grossas paredes de granito nas casas, uma igreja do século XVII que se pensa ter sido, entre os séculos I e V d.C., um templo Romano. O Museu da Casa Grande estava fechado, mas a imponência do solar do século XVIII onde se encontra e as escavações de ruínas romanas, medievais e modernas, visíveis do seu espaço exterior, fizeram antever o quão interessante seria a visita. Não sei se a ausência da gente era sinal dos tempos de pandemia ou aquele abandono do interior que me entristece. Talvez uma conjugação dos dois. Sei, sim, que voltarei para visitar tudo o que ficou por ver. E que passei a sentir quase como responsabilidade divulgar e chamar público que mereça e valorize a esta zona.

Voltámos a Murça a meio da tarde, com o pó da história nos pés e no corpo o suor do calor do Verão que começava a despontar. Hora perfeita para relaxar. Confesso as brincadeiras “à la Instagrammer”… a piscina é perfeita para fotos desse género. Mas a melhor memória que trago é a das palavras partilhadas, com as pernas dentro de água ou deitada no xisto aquecido com os olhos na paisagem.

Foi já na despedida, parados na rua como em conversa de vizinhos que a Odete nos contou a história do lugar. As casas foram compradas há dez anos. A família de Anabela, a outra dona, é daqui e sempre tinha querido fazer algo para promover a região. Desafiou a Odete, quando a oportunidade surgiu e tornaram-se sócias. Depois de dois anos de obras para recuperar as casas, mantendo a fisionomia, materiais e tradição, mas acrescentando conforto, abriram o Bairro do Casal. Com portas para rua que lhe deu nome e janelas penduradas sobre a vertente, é um recanto de sossego em tons de pedra e de verde onde nos sentimos em casa.

Durante a conversa, instou-nos também a passar por Numão onde persiste a muralha de um imponente castelo e pelo miradouro de São Martinho. Durante esta viagem (como já vem sendo habitual em todas, na verdade), tivemos por princípio o “ir andando” consoante a vontade e os conselhos de quem conhecesse as zonas. Fizemo-nos então ao caminho, desviando-o para incluir estas paragens. Não nos arrependemos.

O miradouro de São Martinho vale pela vista e pela estrada para lá chegar. Uma calçada serpeante, às vezes ladeada de muros de xisto, outras aberta aos campos de amendoeiras e oliveiras e às filas onduladas de vinhas. Junto à capela que coroa o miradouro via-se em todas as direcções.

O Douro espreitava em tons de azul num braço de rio que parecia uma lagoa. O verde, ora pontuado ora rendilhado em padrões agrícolas cambiantes, pintava os montes à volta e destacava-se de uma mancha de terra mais avermelhada que atraía o olhar que logo depois se perdia no contorno das montanhas no horizonte. Uma vez mais, tanto o caminho como o destino se provaram dignos do desvio.

O mesmo se poderá dizer do Castelo de Numão. A muralha delimita uma área de dois hectares, no cimo de um monte de onde, em dias claros, se podem avistar os castelos de Ansiães, Castelo Melhor, Castelo Rodrigo, Ranhados e Penedono. Subimos a parte dela para melhor perceber a sua dimensão e apreciar as vistas.

Os registos mais antigos do castelo como tal são de 920 a.C. , mas encontraram-se vestígios arqueológicos que mostram a ocupação do lugar desde o Neolítico. Foi assentamento de Lusitanos, Romanos e Muçulmanos, que terão construído a primeira fortificação. Foi posteriormente acrescentada, destruída e voltada a construir, durante as guerras da reconquista cristã, independência de Portugal e evolução do reino. Foi eventualmente deixado ao abandono e parcialmente recuperado para tomar esta forma, que percorremos, de muralha que delimita um campo de oliveiras e amendoeiras selvagens. Das 15 torres sobram seis e tem 4 portas. Entrámos pela que se encosta às ruínas de uma igreja e cemitério.  A dimensão da muralha, que parece rasgar o céu vista debaixo, impressiona e faz antever a importância que terá tido. O interior, assim meio abandonado meio rural tem o seu encanto. Gosto deste assalto que a Natureza faz, quando deixada em paz.

Repito-me, mas não percebo como desconhecia todo este património. Enquanto nos afastamos, de regresso a casa, penso no muito que tenho ainda para desvendar por esta zona e agradeço à sorte o ter-me levado até ao Bairro do Casal, à Anabela pelo convite, à Odete pelas dicas e reforço a promessa pessoal de retorno. Quero sempre voltar aos sítios onde fui feliz.

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