Regresso à Reserva da Faia Brava

Comecemos pelo equívoco mais evidente.  Nestas paragens chama-se faia a uma escarpa rochosa. O que dá o nome à reserva não é então a conhecida árvore, mas uma encosta especial. De grande declive, onde afloram rochas graníticas escarpadas, ideais para a nidificação de aves rupícolas, esta Faia Brava foi a escarpa que inspirou a criação da reserva. É a que se vê do primeiro miradouro onde parámos com o Marco, o nosso guia, no Trilho dos Biólogos. 

De binóculos em punho, perscrutámos os céus e as encostas do Vale do Côa à procura das aves rapinas que motivaram a criação desta que é a única Área Protegida Privada do país. São 1000 hectares dedicados exclusivamente à conservação da natureza. É daqui que, como nós, hoje, os técnicos da Associação Transumância e Natureza (ATNatureza) vigiam as escarpas para contar os indivíduos e analisar o sucesso reprodutivo. Os biólogos que dão o nome ao trilho.

Este ano o casal de águias reais residente nidificou com sucesso e a cria está a crescer saudável. Enquanto observávamos uma mãe e filho de grifos que descansavam na encosta em frente, o Marco avistou duas águias reais em voo. Com entusiasmo visível pôs a hipótese de ser a cria já a ensaiar voos, sob a vigilância da progenitora. Anotou o momento, para comunicar aos técnicos, enquanto nos explicava as diferenças que permitem distinguir as aves juvenis dos adultos. O olho experiente consegue perceber as subtilezas do contorno das asas e a forma das caudas, ou a maior ou menor plumagem do pescoço. Eu, senti-me apenas privilegiada por poder ser testemunha do momento.

Faz este ano 20 anos que a ATNatureza adquiriu a primeira parcela de terreno, com o objectivo de proteger um casal de águias de Bonelli. A importância destas escarpas na protecção de aves em perigo de extinção estende-se também aos abutres do egipto ou britangos. Neste momento, conhecem-se 5 casais na Faia Brava que, no seu percurso migratório, têm nestas encostas a sua zona de nidificação, de Abril a Setembro.

Mas o objectivo da ATNatureza com a criação da Faia Brava (e de outros espaços) não se limita só à protecção destas espécies. O mote é “Criar espaços para a Natureza” para que todas as espécies de fauna e flora possam viver na harmonia que teriam, não tivessem sido alteradas pela intervenção humana. 

Muitas das áreas adquiridas para formar a reserva eram antigas parcelas agrícolas, abandonadas. Ainda que a ideia principal seja criar espaço para a natureza, foi e continua a ser necessário recuperá-la dos anos de agricultura e pastagem intensivas, fogos e abandono.

As acções principais da associação têm-se centrado no restauro ecológico, através da valorização dos habitats, do aumento da disponibilidade alimentar das espécies mais ameaçadas e da gestão florestal. Isto implica um trabalho imenso, em várias frentes que se interligam numa teia que quase mimetiza as relações naturais.

Por exemplo, a introdução de cavalos garranos e vacas maronesas é, em si só, um retorno aos herbívoros selvagens que habitaram esta região. Esta introdução faz parte de um projecto maior, a nível europeu, chamado Rewilding Europe. Mas a sua presença e modo de alimentação permite também a eliminação de mato rasteiro e a criação natural de clareiras que funcionam como corta-fogos. E são lindos de ver!

No início da nossa visita, começámos a ouvir relinchar. O Marco tentou identificar de onde viriam, mas nada. A coloração da pelagem disfarça-se bem na paisagem. Prosseguimos. As manadas fazem os seus caminhos e são deixadas em paz. Cruzarmo-nos com elas é uma sorte, não é garantia. A natureza é sempre rainha. 

Já a meio do passeio, precisamente numa clareira, fez-nos sinal de silêncio e abrandámos. Ali estavam duas éguas com os seus potros, calmamente a pastar. De sorriso rasgado fotografámos e admirámo-los de perto, mas sem interferir. O Marco explicou-nos que são bastante dóceis porque quase não têm interacção com os humanos, apesar de os verem por ali frequentemente. Não têm razões para temer-nos. Apenas uma vez por ano são apanhados e reunidos para fazer contagem e marcação. A escolha desta raça prendeu-se precisamente com a sua capacidade de existir e reproduzir-se sem intervenção humana, vivendo à vontade. 

Enquanto caminhamos o Marco vai apontando as espécies de árvores. Vemos cornalheiras, azinheiras e oliveiras. São as espécies que ficaram dos antigos terrenos de cultivo e aquelas que surgem naturalmente quando a terra começa a recuperar dos incêndios. Noutras áreas fizeram-se já campanhas de reflorestamento plantando também zimbros , sobreiros e outras espécies nativas.

A discussão sobre o grau de intervenção não é consensual. Discute-se sobre fazer ou não podas às árvores, sobre que espécies replantar, ou deixar aparecer, sobre introduzir ou não animais que não apareçam espontaneamente. Segundo Marco, o que se almeja é um equilíbrio entre a intervenção humana e um assilvestramento natural. Na minha cabeça, faz sentido. Uma terra que foi primeiro intervencionada durante tanto tempo e depois abandonada, precisará certamente de um empurrão extra para recuperar.

Depois de um grande incêndio que se adentrou na reserva em 2005, redobraram-se os esforços de vigilância e de recuperação. Para além de uma equipa de vigilantes que percorrem a reserva, nos meses mais críticos, têm-se feito também campanhas de voluntariado para vigilância de possíveis focos, à distância.

O meu primeiro contacto com a Faia Brava vem de uma destas campanhas, em 2017, quando passei duas semanas em Algodres. Todas as tardes, do cimo de uma colina de onde se via quase toda a reserva, vigiava o horizonte em busca de colunas de fumo. Acompanhada apenas por uns binóculos, mapa e bússola orientados e o telefone para dar o alerta ficava até aparecerem as primeiras estrelas e a terra ficar no escuro. Felizmente o único fogo que vi foi o de alguns pores do sol espectaculares. Nada tem ardido desde 2005. 

Nessas duas semanas, as minhas manhãs eram passadas em Figueira de Castelo Rodrigo a trabalhar no viveiro florestal, de onde saem as árvores para a reflorestação. Este viveiro está localizado numa escola secundária, vazia na altura por ser tempo de férias. Esta localização não é aleatória. Uma parte importante do trabalho da ATNatureza prende-se com a educação para a conservação. Este viveiro é tratado não só pelos técnicos e voluntários da ATNatureza, mas também por professores e alunos promovendo assim a aprendizagem e o desenvolvimento de relações com o meio natural. Na altura certa, as acções de reflorestação envolvem também os alunos que podem ver na natureza os frutos do seu trabalho e perceber no terreno a importância destas acções. Para além disto, promovem-se também sessões de educação ambiental noutras escolas e visitas de estudo.

Para além do trabalho no viveiro e a fazer a vigilância de incêndios, tive a oportunidade de acompanhar alguns dos biólogos nas suas saídas de campo. Andei, por exemplo, pelos campos agrícolas circundantes a contar perdizes e coelhos. Estas espécies são algumas das presas das águias e noutro dos projectos desenvolvidos pela ATNatureza é fomentado o aumento das suas populações, como forma de garantir alimento e manter os ecossistemas em equilíbrio.

Outro projecto exemplo da possível simbiose natureza/ruralidade é a recuperação de antigos pombais. Outrora símbolo da escassez de alimento (os pombos eram não só fonte de estrume, mas também de nutrição) encontram-se abandonados por toda a paisagem da região.  A sua recuperação nos terrenos da reserva pretende aumentar a população de pombos-das-rochas, outra importante presa das águias.

Alongo-me. Nomear todos os projectos e iniciativas tornar-se-ia maçador, mas acho essencial transmitir, pelo menos em parte, o enorme trabalho desenvolvido pela ATNatureza não só na Reserva da Faia Brava, mas nos outros Espaços para a Natureza que tem vindo a adquirir para preservar e recuperar.

No dia da visita com o Marco recordei e reforcei o sentimento de admiração por este conjunto variável de pessoas que, ao longo de 20 anos, têm lutado para que a natureza tenha espaço e tempo para se recuperar. Para que todos nós possamos não só desfrutar da sua beleza, mas aprender com ela sobre a resiliência, as interdependências de espécies, o sentido e a importância das comunidades e do trabalho em conjunto. 

Fazer este Trilho dos Biólogos, em visita guiada, permite ficar a conhecer não só uma parte do terreno da Reserva, mas a sua história e os esforços feitos para a criar. O valor da visita é mais uma fonte de rendimento para todo o trabalho necessário, mas acho sinceramente que fazê-la com guia é também uma mais valia para os visitantes. Torna-se uma experiência não só lúdica, mas de aprendizagem. Não só bela, mas colaborativa.


Para além desta caminhada podem ser marcadas visitas com actividades mais específicas para profissionais ou curiosos que tenham objectivos mais concretos. Têm os contactos onde podem fazer as marcações ou pedir mais informações aqui.

Outras maneiras de apoiar o trabalho da ATNatureza são tornar-se sócio, fazer um donativo ou participar como voluntário nas iniciativas. Tudo explicadinho aqui.


(Se estiverem cheios de força e gostarem de desafios de bicicleta, a Grande Rota do Côa  atravessa a Faia Brava de norte a sul. Vão com cuidado e responsabilidade, não deixem lixo e não saiam do trilho. Eu, fá-lo-ei algum dia seguramente!)

4 thoughts on “Regresso à Reserva da Faia Brava

    1. É um território lindo, e um projecto que vale muito a pena conhecer e apoiar. Fico muito feliz de o promover e fazer chegar a quem ainda não conhece.

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