Em 2020, eu e o Borja passámos dois meses na Manta Rota, aquando do primeiro confinamento Covid. Os meus pais têm lá casa e foi o nosso refúgio, depois de fugir do Nepal à pressa. A pé, explorámos tudo o que eram trilhos caminháveis e ruas com pouco trânsito num raio de 20 quilómetros. Demos várias vezes com as placas da Ecovia do Litoral do Algarve e ficámos curiosos. Esta ecovia, com 214 quilómetros, atravessa o Algarve de um extremo ao outro, ligando o Cabo de São Vicente a Vila Real de Santo António. Segue por ciclovias já existentes, caminhos rurais, caminhos paralelos à Estrada Nacional 125 e pequenos troços nessa estrada, seguindo sempre, mais ou menos, ao longo da costa.

Em Outubro de 2021, agarrámos nas bicicletas, metemo-nos no Intercidades para o Algarve e fomos percorrê-la. Como só tínhamos três dias, e queríamos ir com calma, deixámos o troço Cabo São Vicente — Lagos para outra altura e começámos da estação de comboio de Lagos. Seguimos o traçado da ecovia, misturando algumas pequenas rotas, em zonas onde parecia mais bonito o desvio e nos troços em que ia demasiado tempo na Nacional 125. Eu já ía preparada para a beleza pontual do percurso, mas não estava à espera dos assaltos de memória que a rota proporcionou. Com cada pedalada ia desenrolando recordações de passagens por várias zonas do Algarve, em alturas diferentes da vida.

Começou logo na Meia-Praia. O trilho segue paralelo à linha de comboio, entre esta e a praia. Lembrei-me dos verões em família, numa aldeia perto de Lagos. Das sestas forçadas antes de descermos até ali, da água fria que trazia a nortada, os jogos de raquete com o meu pai e o perigo iminente dos peixe-aranha. Recordei as sandes de banha que o meu irmão, quase bebé, cravava à velhota que nos arrendava a casa e partilhava o quintal. Do ar de nojo da minha mãe e da cara sorridente dele, lambuzado de gordura.
De Lagos aos Salgados, o primeiro dia, foram 59 quilómetros. Na zona de Figueira, antes de chegar a Alvor, a ecovia seguia um bom bocado pela nacional. Nós tínhamos visto no mapa um possível desvio mais junto à costa, passando por um pântano e umas salinas, ao pé de uma quinta abandonada com umas ruínas romanas. Decidimos arriscar possíveis portões fechados e não ter passagem por cima de uma ribeira e fomos espreitar o caminho. Tivemos de saltar a linha de comboio, toquei numa rede electrificada sem querer e quase voltámos para trás, não fosse um vizinho gritar de longe que podíamos abrir o portão que apareceu. Compensou a insistência. Dezenas de cegonhas, garças e flamingos acompanharam esse pedaço ciclado por terra batida e arbustos densos, elevados entre a água.

Chegados a Alvor, percorremos as ruas empedradas com a promessa de voltar com mais tempo. Daí a Portimão foi uma sucessão de aldeamentos e prédios sem interesse nenhum. O caminho é fácil, com ciclovias, bermas largas ou estradas sem movimento, mas é apenas betão. Na aproximação à praia do Vau dá para perceber os trilhos pedestres junto às falésias, de beleza conhecida. Só pecam pela estrada para lá chegar, que era a que percorríamos.
A entrada em Portimão transportou-me para o início da adolescência e umas férias na Praia da Rocha. A minha primeira ida à discoteca, uma daquelas de hotel, onde entravam famílias com crianças, como a minha. Enquanto eu dançava envergonhada, às 10 da noite, o meu irmão dormia num sofá, sonhando provavelmente com os bonecos animados da manhã.
Desencantados com a paisagem megalómano-turística, fizemos mais uns quilómetros para ir almoçar a Ferragudo. No Sueste, atacámos com vontade um enorme robalo, de frente para a baía. A garrafa de branco no estômago pesou nas pernas ao recomeçar, mas há prazeres que justificam o sacrifício.
De Ferragudo aos Salgados nada a assinalar. Estradas secundárias, um pouco da EN125, pouco trânsito, mas a mesma selva de betão. A vista só se compõe mesmo ao chegar à Lagoa dos Salgados, que estava seca, mas ainda assim bonita, quando a via segue pelos passadiços de protecção das dunas.

Aproveitámos os preços de época baixa e dormimos num aldeamento dos muitos que por ali se espalham. Chegámos à recepção empoeirados, sob os olhares aprovadores de uma família de alemães que se ia embora, e ainda demos um mergulho na piscina antes do jantar.
No segundo dia rumámos a Faro. Outros 59 quilómetros. Em Albufeira voltei ao passado, a um fim de noite descalça com as amigas, a comprar ilegalmente bolos da carrinha de distribuição da padaria. Tínhamos organizado tudo ao pormenor para a despedida de solteira da Mariana e do planeado ao espontâneo, nada desiludiu. Do passeio de jipe em Monchique, trouxemos uma sugestão do condutor e um bilhete assinado, para entregar ao seu amigo João Paulo, num bar que já nem me lembro o nome, mas reconheci quando pedalei pela porta, nesse dia. “Ele trata bem de vocês”. E o João Paulo não desiludiu, mantendo-nos a mesa sempre abastecida de bebidas coloridas, fazendo-nos um desconto no fim e ainda continuando connosco para o Capítulo V até ao nascer do sol. Preocupado, ainda nos meteu no táxi que nos levou de volta a casa entre gargalhadas.
Em Outubro, Albufeira já não é o terror de gente do Verão, sendo o terror urbanístico que já é há décadas. Atravessá-la de bicicleta não é particularmente agradável. Para fugir à Estrada Nacional há que fazer voltinhas pelas ruas estreitas do centro e descer e subir algumas vezes. Do ponto mais alto, o miradouro para a praia, percebe-se bem o estrago que tem ocorrido no que já foi uma bonita vila em torno da enseada. Um caos de casas, um centro comercial e escadas rolantes para a praia. Não consigo entender o que tanto fotografavam ali as pessoas. Deixou-me triste.
Passando a Oura, não descemos a Santa Eulália, mas lembrei-me das vezes que subi e desci essa rua, nos três anos que lá passei férias, dos 15 aos 18. Também já não seria igual, com os resorts que agora ocupam o espaço das casas particulares que alugávamos. No primeiro ano apaixonei-me pelo vizinho da palhota de praia do lado, que também passava férias com os pais. O Miguel. Só passamos dois dias juntos, a conversar, passear na praia e a subir às rochas. Nem um beijinho demos, mas arrancou-me vários daqueles suspiros só possíveis nos amores platónicos da adolescência. Trocámos cartas durante dois anos. Ele era das Caldas da Rainha e, na altura, era como se fosse de outro país. Nunca mais nos vimos. Já o Gonçalo, outro vizinho de palhota que me convidou para jogar às cartas, tornou-se um amigo que fui encontrando várias vezes ao longo dos anos.

Apesar de rico em memórias, este troço da ecovia foi o menos agradável de todos. Só estradas e prédios. O único ponto bonito, antes do grande final, foi uma estrada de terra que vai dar a uma ponte por cima de um canal, antes de entrar em Vilamoura. Percorremos a marina, seguindo a via, e ao avistar um dos prédios mais antigos lembrei-me dos fins de semana e férias na casa dos pais de um amigo de liceu, quando tinha 18 anos. Éramos 10 metidos num T1. Deitávamos-nos de madrugada, vindos de uma discoteca perto de que não lembro o nome, ou da Kadoc. Dormíamos oito espalhados pelo chão da sala, depois de atacar todas as sobras do frigorífico e acordávamos a meio da tarde, para ir para praia. Ninguém achava piada às manias de Vilamoura, mas toda a gente gostava da casa grátis e íamos voltando. O mais importante era a companhia mesmo.
O Borja, que nunca por ali passara, só comentava o quão ridículo tudo aquilo era. Os bares a imitar pubs com moinhos à porta, os restaurantes a armar aos cucos, os Ferrari parados à porta do hotel e gente a circular com ar de não ter dinheiro para pagar nada daquilo. Muito mitra-chique.
Até Quarteira foi só seguir a avenida da praia. Quarteira é outro terror de betão. Prédios altos, sem nenhum ordenamento. Mas pelo menos assume-se como o que é. Um sítio de férias simples, com uma avenida junto à praia que até é simpática, dentro do género. Parámos por ali a almoçar, em frente ao mar.
Depois disso, o pior do caminho. A Ecovia atravessa as estradas que percorrem Vale de Lobo e a Quinta do Lago. A opulência, o desperdício, os campos de golfe, o cimento, apesar do disfarce de “natureza” das palmeiras e relvados que drenam os solos. Um medir de pilinhas de quem só quer gritar “a minha casa é melhor que a tua”. Acelerámos estrada fora, mas parecia que nunca mais saíamos dali.
Chegando à praia de Vale de Lobo começamos a acompanhar a Ria Formosa e tudo se torna mais agradável. Será assim até ao fim, reforçando a minha preferência pelo sotavento algarvio. E, se o barlavento guarda memórias antigas, a partir de Faro a ligação afectiva, para além da visual, está cada vez mais presente. Chegando a Faro, sei que posso estar com o meu amigo Vasco. Passando por Olhão, consigo ver a Francesca. E daí à Manta Rota, o tempo e o espaço vão-se misturando em memórias de várias épocas, enquanto a ria se estende e encolhe ao sabor das marés. Mas adianto-me.
Saindo do parque de estacionamento da praia, a ecovia segue por um passadiço com a ria de um lado e o campo de golfe do outro.

Acabado o relvado, chega-se a terra batida na zona do Ancão. A ria continua à direita e à esquerda distribuem-se as grelhas mais ou menos ordenadas dos viveiros. Fazendo este Caminho do Ludo, tínhamos água e verde a toda à volta e pedalávamos felizes, cruzando-nos com garças, já a pensar no mergulho no mar na Ilha de Faro. Num tirinho estávamos dentro de água.

Pouco depois, a comer ostras com o Vasco num restaurante à beira-ria. Foi já perto do pôr-do-sol que, salgados e bronzeados, contornámos o aeroporto pelas salinas e nos dirigimos ao centro de Faro. Nessa noite, “acampámos” em estilo no Lemon Tree Urban Camping.

Tínhamos planeado chegar à Manta Rota no terceiro dia. Eram só 50 quilómetros e já conhecíamos parte do caminho. Sabíamos que era bonito e relativamente simples. Mas algo que comemos no dia anterior trocou-nos as voltas e acabámos por ter de fazer uma paragem técnica e dormir em Pedras d’el Rei. Poupo-vos os pormenores.
A manhã prometia. Saíndo de Faro com calma, o caminho deixou-nos rapidamente em Olhão, que nos recebeu com as salinas em tons de rosa.

Consegui dar um abraço e pôr a conversa em dia com a Francesca, uma amiga querida com quem morei em Lisboa e agora vive ali, e continuámos, com a sugestão de um restaurante em Santa Luzia para o almoço. Parecia rápido de chegar, mas os problemas começaram logo à saída de Olhão. Segundo o mapa e os dois tracks que tínhamos sacado, a via seguia por um caminho paralelo à linha do comboio, logo depois do Parque de Campismo de Olhão. Chegados ao ponto, esbarrámos com o caminho fechado e uma placa enorme de Propriedade Privada. Do outro lado da linha, para onde supostamente iríamos, mais à frente, era àquela altura também um terreno privado e vedado. Onde estávamos havia uma abertura na rede, para a linha. Estávamos a espreitar, a tentar decidir o que fazer quando vimos uma pessoa a caminhar na nossa direcção, num terreno do outro lado dos carris, mais à frente. Chegado à vedação, desceu para a linha, veio encostado ao muro quase até ao pé de nós, atravessou e saiu pelo buraco onde estávamos. Perguntámos se de onde vinha era caminho público e disse que sim. Arrastar as bicicletas pela linha aquele bocado não era apelativo, mas ter de dar uma volta enorme até à Nacional era ainda menos, por isso, com cuidado e atenção, sempre atentos ao barulho do comboio, lá fizemos esses 100 metros pela linha e subimos para o trilho, de novo ao lado das salinas e viveiros. Não tínhamos feito um quilómetro quando demos com novo obstáculo.
O trilho parecia continuar por um passadiço. O passadiço transformar-se-ia em ponte, para atravessar uma ribeira. Não sei se estava inacabado, ou a ser desmontado, mas o passadiço acabava no ar, antes de chegar à ribeira, que parecia funda. A única forma de passar, era através da ponte da linha de comboio, pelos carris.


Depois de alguma hesitação e muita frustração, decidimos avançar por aí, com muito cuidado. Desmontámos os alforges, que passámos na mão, primeiro. Caminhar por cima das traves da linha, a ver a ribeira por baixo e sem qualquer corrimão dava alguma vertigem, mas pior mesmo era o medo que viesse algum comboio. Apesar da boa visibilidade, confesso algum tremor de joelhos. Entre passar os alforges e passar a bicicleta, percebemos que se sentia bem a vinda de um comboio. Começámos a ouvir barulho e a sentir os carris a vibrar muito antes de se ver sequer o que fosse. Deu tempo para sair da ponte e da linha, esperar que o comboio passasse e atravessar depois as bicicletas. Mas não sei o que sentiríamos se estivéssemos com elas na mão, no meio da ponte. Melhor não saber.
Com tudo isto, o que seria um percurso de uma hora já ia em duas. Entre isso e as cólicas que começavam a aparecer, achámos melhor parar na Fuzeta para almoçar e reavaliar. Não tivemos mais surpresas até nos sentarmos na Casa Corvo a comer o melhor bife de atum na brasa de sempre. Havia cólicas, mas também havia fome. Um almoço, duas tónicas e uma ida à casa de banho depois, parecia que a coisa estava controlada e podíamos seguir caminho.

Algures entre Arroteia de Baixo e Luz de Tavira, apesar da facilidade da rota, que alternava entre salinas e estradões agrícolas, com boas vistas da ria, percebemos que não íamos conseguir desfrutar do caminho até à Manta Rota. Voltavam as cólicas. A ecovia passa à porta do aldeamento de Pedras d’el Rei, antes de chegar a Santa Luzia e nós recorremos a um estúdio de última hora. Bendita época baixa. Só faltavam 20 quilómetros, mas teriam sido de sofrimento. Assim, depois de um descanso, ainda caminhámos até à praia dos Barris e o seu cemitério de âncoras, ao pôr do sol.

Acordámos impecáveis, sem entender o piripaque do dia anterior. Saímos com calma e pedalámos felizes até Tavira e daí a Cabanas sempre junto à ria. Lembrei-me das Dentíadas de Verão, os debochados encontros de estudantes de Medicina Dentária e mandei mensagem às minhas amigas dessa altura.

De Cabanas a Cacela Velha o caminho é mais interior, sempre por uma estrada ladeada de árvores, quase sem trânsito. Foi uma alegria.

Chegados a Cacela Velha, estávamos já em território desbravado vezes sem conta. A aproximação ao forte, por cima da ria e com o areal a perder de vista, nunca cansa. Fomos picar o ponto com um sorriso nos lábios.

Três quilómetros depois estávamos na Manta Rota, a tempo de um mergulho e almoçar.
A ecovia segue até Vila Real de Santo António. Como íamos ficar por ali mais um mês, e havia que tele-trabalhar, deixámos a recta final para o fim de semana seguinte. Um ida e volta de 20 quilómetros, por passadiços na praia até Altura, o calçadão de Monte Gordo e, a melhor parte, a Mata Nacional das Dunas Litorais de Vila Real de Santo António.

Pela sombra dos pinheiros e com o cheiro a maresia, chegámos à Foz do Guadiana.
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