A Árvore Sagrada

No Dia Internacional da Árvore e da Floresta, relembro uma muito especial e um projecto de voluntariado, no Equador.

Imaginara-a maior. Quando o Ramiro apontara para a Montanha Ilaló e me contara sobre Huila, a árvore com 1815 anos, imaginara uma gigante. Bem sei que não faz sentido. A idade não se mede em altura, nem nas árvores, nem nos homens. Será que nas árvores, como nos homens,  o peso da experiência, o enrugar da pele, faz encolher?

árvore milenar em Quito, Equador
A árvore Huila

Passei as mãos pelo tronco cinzento, duro, fendido. A chuva do dia anterior não fora suficiente para compensar o sol inclemente e a seca dos meses anteriores. Mas ainda havia vida naquela anciã. Toquei as pequenas folhas que despontavam do tronco e dos ramos superiores, emocionada. A Huila sagrada continuava a sua luta, como fazia há milénios.

Ramiro Azaña era um membro da Comuna Tola Chica. Ele e a sua família eram os meus anfitriões em Tumbaco, perto de Quito, no Equador. Em troca de alojamento e alimentação na sua casa, eu ajudava com trabalho no viveiro da comuna e nas terras da família.

Familia Azaña

A história destas comunas recua a vários séculos, em diferentes países da América Latina. Os invasores espanhóis relataram os sistemas comunitários de partilha de terra dos povos indígenas que encontraram, e que depois pilharam e redistribuiriam durante a época colonial. No Equador, em 1937, foi aprovada uma Lei das Comunas que retribuiu terras comunitárias a grupos familiares que tinham comprado as suas terras de volta ou que podiam provar o direito ancestral às mesmas.

Após décadas de diferentes versões desta lei, actualmente o Equador tem várias comunas, com diferentes níveis de organização e envolvimento comunitário. As comunas têm direito aos seus próprios sistemas autónomos de gestão da terra e há uma gama diversificada de maneiras de gerir esses sistemas, em relação ao governo central.

Tola Chica é uma comunidade de 64 famílias, com cerca de 400 pessoas. É uma das comunas mais organizadas e activas do país. Também é conhecida como a “mais verde” do Equador devido aos seus esforços na promoção da agricultura sustentável e proteção da natureza. A propriedade da terra é comunal e as decisões são tomadas por um sistema democrático, com um conselho directivo eleito pela comunidade para orientar os procedimentos. Algumas responsabilidades são totalmente partilhadas: decisões políticas, questões hídricas, grandes áreas de cultivo, área desportiva, escola comunitária, centro de eventos, capacitações e um projeto de turismo (para o futuro). Outras atividades comunitárias incluem dois festivais culturais e 12 mingas (dias de trabalho coletivo) por ano. Estas são usadas ​​para trabalhar a terra ou na melhoria dos espaços comuns. No segundo dia com os Azaña fiz parte de uma, onde arranjámos vários buracos na estrada em conjunto com grande parte das famílias.

A terra da comuna estende-se ao longo de um lado da montanha Ilaló, no distrito de Tumbaco, perto de Quito. A maioria das famílias não mora lá. Já tinham outras casas antes da distribuição da terra. Alguns começaram a construir entretanto, outros usam os seus lotes para a agricultura. É o caso da família de Ramiro, que mora a 10 minutos de carro.

Além disso, na montanha ainda não havia canalização nem abastecimento de água e tinham passado anos com problemas com o bairro vizinho, que reivindicava o direito a parte da terra. Uma batalha judicial que durara mais de 10 anos acabara nesse ano, a favor da comuna, mas nessa década sofreram vários ataques, com ocupação da antiga casa comunal e destruição de um viveiro com mais de 10.000 plantas. Foi depois disso que o viveiro em que trabalhei foi construído, na casa dos Azaña.

Na parte mais alta do terreno foi criada uma reserva natural, onde não é permitida a construção. Os campos agrícolas são cercados por árvores, de modo a formar corredores naturais e proteger o solo. Há uma floresta nativa, intocada há centenas de anos e áreas que foram totalmente reflorestadas com árvores nativas. Está planeado reflorestar mais 50 hectares, mas as batalhas legais e a necessidade de obter recursos para garantir o abastecimento de água suficiente, construindo coletores de água da chuva antes da plantação, atrasaram o processo.

Eu não visitara essa área ainda, e partia em três dias. O Ramiro não queria que eu fosse embora sem a ver, mas aquela zona não tinha transportes públicos e eles não tinham carro. Depois de alguns telefonemas, combinou com um dos comuneros que subia diariamente para alimentar os seus animais e apanhámos boleia na traseira da sua carrinha.

Enquanto o Ramiro me apontava as árvores que existiam na floresta nativa e me orientava pelos campos apontando plantas medicinais e as áreas reflorestadas, percebi o seu amor pela terra e o seu compromisso com a sua preservação. Ali, os únicos sons eram o vento soprando pelas folhas, o zumbido de insectos e o chilrear dos pássaros e ele parava frequentemente só a escutar. Ao redor observava as áreas onde a agricultura intensiva, os incêndios e o corte de árvores tinham deixado as montanhas desertas. Compreendi a importância do trabalho que tentam desenvolver e de todo o conhecimento que adquiri essas semanas a semear, transplantar, plantar, podar e cuidar das plantas do viveiro.

Vale de Tumbaco, Equador
Vale de Tumbaco, desde Ilaló

A Huíla fica no topo da montanha, vigiando a sua encosta e o vale de Tumbaco. Ao longo dos séculos, tem sido testemunha de todas essas lutas e mudanças. Sofreu com a ganância e a inveja dos homens e agora apoia-se nos homens para sobreviver. Enquanto acariciava o seu tronco, sussurrei as mesmas palavras que dizia para as pequenas árvores frágeis que transplantara no viveiro e que, espero, um dia se juntarão a ela aqui: A aguantar, con fuerza. Todavia hay quien te quiera.

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