Kathmandu

Kathmandu é um emaranhado. É um emaranhado de avenidas, ruas e ruelas, um emaranhado de história com estórias, um emaranhado de religiões, dinastias e etnias, um emaranhado de épocas que parecem conviver todas hoje, como há séculos. 

A cidade encontra-se num vale, rodeada pelos Himalaias, que ao longo da história a protegeram e isolaram. Ao norte, tem o Tibete e a China. Ao sul, o planalto do Terai e a Índia. O Nepal no geral, e Kathmandu em particular, situam-se algures entre estes mundos, sofrendo influências de todos, mas mantendo a sua singularidade que é um emaranhado de todas elas. 

Na sua história, como no seu dia a dia, a realidade mistura-se com o misticismo.Sabe-se que grande parte do que é hoje o vale de Kathmandu era um lago. No entanto, a lenda de como o lago se transformou é contada como se fizesse parte da história da cidade. A história que se vê estória conta que houve um buda que plantou uma flor de lótus no lago. Dessa flor brotou um raio de luz, o auto-criado deus Swayambhu. Manjushree, um dos bhodisattva (“santos” budistas) vendo esta luz, cortou uma abertura nas montanhas, drenando o lago. O vale assim criado, sagrado e fértil, foi povoado e cultivado. O local onde apareceu a luz de Swayambhu foi protegido com uma pedra formando uma colina. No cimo desta foi mandado erigir o maior complexo budista da cidade.

Monkeys in Swaymbunath

Aqui, voltamos à história. Em Swayambunath, uma colina na zona oeste de Kathmandu, está uma das stupas (santuário budista em forma de cúpula) mais antigas do Nepal. Homónima da colina, foi mandada construir pelo rei Manadeva, em 460 DC. Os mosteiros, templos, budas gigantes e altares que rodeiam a colina foram sendo acrescentados ao longo dos séculos. Hoje em dia, é lugar de peregrinação para budistas, hindus e turistas à procura das melhores vistas sobre a cidade. Vislumbrar os telhados e prédios coloridos de Kathmandu, com milhares de bandeiras de oração ao vento e os Himalaias como pano de fundo pode ser uma experiência tão religiosa como circundar a stupa no sentido do ponteiro dos relógios e activar todas as rodas de oração enquanto se murmura Om Mane Padme Hum.

Prayer will

A cada um o seu ritual, todos emaranhados na celebração.

Os três reinos

Os Lichavi e os Malla foram dinastias que reinaram no vale entre os séculos V e XVIII. Vieram do norte da Índia e da planície gangética e misturaram-se – física e culturalmente – com as tribos das montanhas. Os Newar, historicamente considerados o povo do vale, são o resultado desta mistura e os maiores influenciadores da arte, cultura, arquitectura e gastronomia de Kathmandu.

O Budismo e o Hinduismo, as suas duas religiões, chegaram através desta migração da Índia. No entanto, devido ao seu isolamento, não foram modificadas pela influência muçulmana dos povos que conquistaram o país vizinho a partir do século XII, mantendo até hoje características que se foram perdendo ou modificando do outro lado da fronteira.

Os registos coerentes de ocupação mais antigos pertencem aos Licchavi, no século V. Vindos da Índia, através das rotas de comércio transhimalaicas, uniram várias tribos que estavam dispersas pelo vale formando vilas ao longo dessas estradas. Com o crescimento, as vilas acabaram por unir-se, ao longo dos séculos, formando o que é hoje Kathmandu, mas as rotas são ainda perceptíveis no desenho da cidade e os bairros mais antigos mantiveram parte do que era a essência de cada povoado.

Em Ason Chowk, cruzam-se as estradas que correspondiam a estas rotas de comércio entre a Índia e o Tibete/China e esta é, ainda hoje, uma zona essencialmente de comércio tradicional. Por baixo de uma teia de cabos eléctricos, em carrinhos de mão, bancas de madeira, ou espalhados pelo chão,vendem-se vegetais. Numa esquina, um senhor causa um engarrafamento de motas ao parar a sua bicicleta carregada de bananas e uvas. Há lojas de especiarias que são apenas nichos na parede com o vendedor sentado no chão, rodeado de saquinhos aromáticos. Numa das pontas deste cruzamento/rotunda/praça, brilham os telhados dourados do templo de Annapurna, deusa Hindu padroeira da comida. Os sinos rituais misturam-se com o barulho das motas, buzinas e pregões e o fumo das velas mistura-se com o dos escapes, o pó e o incenso.

Ason Chowk, Kathmandu

Caminhando desde Thamel, o bairro mais turístico, as lojas de roupa e material de trekking, artesanato e quinquilharias vão sendo substituídas pelo que é necessário na vida do dia a dia e os edifícios começam a mostrar alguma da sua antiguidade. Lojas de electrónica em rés do chão onde temos de entrar quase sentados convivem com oficinas de instrumentos tradicionais. Estatuária divina diversa e acessórios para as cerimónias religiosas são vizinhos de tachos, pratos e panelas em ferro e cobre. A última colecção de coloridos modelos de sari e salwar kameez transborda das lojas para a rua onde as montras são as próprias portas e cabides pendurados nos beirais. Misturam-se edifícios tradicionais de  tijolo e madeira trabalhada, com construções em cimento e a cada esquina espreitam templos hindus e budistas de dimensões variadas: pequenas representações de um Ganesh entre três paredes cobertas à altura da cintura, um coto de árvore coberto de moedas pregadas, pagodas de dois e três andares, alguns com lojas no rés do chão, uma stupa em torno da qual crianças com uniformes escolares jogam à bola.

fabric shop Kathmandu

As ruas enrolam-se umas nas outras em becos e quarteirões que acabam em pátios interiores, uma distribuição remanescente ainda da arquitectura antiga da cidade, típica da arquitectura Newari.

Entre Ason Chowk e Indra Chowk, quase escondido no meio do bulício comercial, encontramos o Jana Bahal. Os baha são estes pátios característicos dos Newar, construídos para albergar um templo budista. No Jana Bahal a divindade residente é Seto Machindranath, adorado por budistas e hindus. O templo com dois andares e telhados dourados, situado no centro do pátio, está rodeado por rodas de oração. À sua volta distribuem-se stupas votivas budistas e estátuas de divindades budistas e hindus. Esta convivência Hinduismo/Budismo é característica da cidade e tem várias explicações complementares que contribuem para o emaranhado que a define.

Jana Bahal, Kathmandu

O Budismo derivou do Hinduismo na sua origem, o que explica alguns dos costumes e divindades em comum. Na génese de Kathmandu a mistura dos vários povos e o isolamento promoveu a miscigenação das duas religiões. Elas existem em separado e em conjunto, ao mesmo tempo. Muitos Newari consideram-se tanto budistas como hindus e mesmo os que se afiliam apenas a uma das religiões, participam nos festivais de ambas e partilham devoções. 

Durante a dinastia Malla (séc XIII a XVIII), após um breve período de união, o vale dividiu-se em três reinos rivais: Bakhtapur, a Este e, separados pelo rio Bagmati, Patan a Sul e Kathamandu, a Norte. No centro da capital de cada um destes reinos encontrava-se o palácio, rodeado por templos, fontes e representações divinas – a Durbar Square de cada um. Os reis competiam entre si pelo controle do vale e pela magnificência da arquitectura nestas praças que, apesar da destruição provocada pelos terremotos de 1934 e 2015, se mantêm uma amostra viva da arte e mestria Newar: construção em tijolo de barro vermelho, frisos e janelas de madeira finamente trabalhada, pagodas com vários telhados, stupas, estátuas e representações religiosas que misturam elementos budistas e hindus.

Patan Palace

Quando os Ghorka (dinastia Shah) invadiram o vale e o reunificaram, escolheram a praça de Kathmandu para governar introduzindo novos templos e alterações ao palácio. Os Rana – uma sucessão familiar de primeiros ministros que controlaram o país entre 1846 e 1951 (mantendo os Shah no trono, como reis fantoche) optaram por construir um novo palácio noutra localização. As Durbar Square dos antigos reinos são então um testemunho da antiguidade no dia a dia da cidade de hoje.

O que era o reino de Patan, apesar de ser considerada uma cidade diferente, parece apenas mais um bairro de Kathmandu. Até a ponte que agora une estes dois lados da cidade pode passar despercebida enquanto navegamos o trânsito caótico com as suas milhares de motas. Dependendo da hora, uma viagem de táxi entre Thamel e Pattan pode demorar entre 15 minutos e mais de uma hora. Nesse tempo, podemos apreciar a variável displicência dos polícias sinaleiros que, da sua varanda branca ou directamente do meio da estrada, abanam vigorosamente os braços ou indolentemente os dedos. Não existem semáforos luminosos na cidade e os cruzamentos são controlados por estes oficiais de camisa azul, chapéu e luvas brancas, com graus de eficiência variáveis.

Patan é considerada a cidade mais antiga do vale. A forte influência budista está presente na própria distribuição da cidade, que foi desenhada como uma mandala, de acordo com a Roda da Virtude (Dharma – Chakra), limitada por quatro stupas nos pontos cardeais. Existem dezenas de baha, guardados por estátuas de pedra de leões. Estes templos são cuidados rotativamente por famílias dos bairros, mantendo a tradição milenar de “Budismo sem monges” do Budismo da Via do Diamante. Durante um ano, a família muda-se para o baha e é responsável pela sua manutenção e pelos rituais. 

Durante o reinado dos Malla, que incutiram o Hinduísmo como religião principal, floresceram também os muitos templos hindus que por aqui se vêm, mas mantém-se até hoje a convivência das duas religiões que caracteriza a cidade. 

É muito comum, por exemplo, ver-se um lingham de Shiva a servir de base às pequena stupas votivas que se encontram nos mosteiros budistas, ou bandeiras de oração budistas penduradas em templos hindus.

Patan é, e foi sempre, uma cidade de artesãos. Há registos da apreciação da qualidade do trabalho do metal por enviados chineses do século VII e, até hoje, esta é uma zona de produção de estátuas de bronze banhadas a ouro. Esta tradição deriva também da influência budista, uma vez que os primeiros artesão eram monges que fabricavam estátuas dos diferentes budas e bodhisattvas. A arte espalhou-se e foi passada de geração em geração em várias famílias. Esteve em declínio, mas com o aumento do turismo viu um ressurgimento da actividade. É uma competição desleal contra os materiais baratos e a produção industrial de lembranças, mas continuam a  existir pequenas fundições familiares espalhadas pelo bairro e o dourado é uma presença constante nas montras das dezenas de pequenas lojas espalhadas em torno da praça principal. No entanto, a maior parte do negócio deriva das oferendas de estátuas a mosteiros budistas espalhados pelo mundo, que continuam a ser encomendadas aos artesãos de Patan. 

Patan Durbar Square

A Durbar Square parece menos contida que a de Kathmandu, mais parte do seu entorno. Apesar da monumentalidade dos edifícios principais sente-se uma continuidade entre as ruelas que lá desaguam, e a rua de tijolo vermelho que acompanha as paredes do palácio.

Nestas paredes, sentam-se senhores com os seus topi – os chapéus tradicionais – e é muito comum ver passar cortejos de mulheres com saris vermelho e negro, camisas rosa e faixas brancas e homens tocando instrumentos e carregando uma senhora idosa num palanque enfeitado. Patan é uma cidade de festejos e festivais, e segundo a tradição Newar é fazendo esta mistura de procissão e festa pelos templos que se celebra o 77º, 84º ou 99º aniversário das avós. 

festiveties at Patan, Kathmandu

A partir de 1951, quando os Rana foram depostos e o rei voltou ao poder efectivo, o Nepal abriu-se ao mundo. Construiu-se a primeira estrada motorizável com ligação à India e criaram-se relações com vários países. Para além do turismo, e respondendo a uma sucessão intercalada de golpes reais, movimentos democráticos e populares, guerras internas e um sistema corrupto, foram várias as ONG e representações diplomáticas que passaram a estar presentes no país e quase todas parecem ter escolhido Patan e os seus arredores para viver. Com o grande número de expatriados (e com o aparecimento de uma classe média nepalesa, inexistente antes), começaram a surgir também cafés, restaurantes e lojas mais modernos, que coexistem com as tradições milenares. O emaranhado passado/presente é um novelo intrincado por aqui: ao lado de um mural de arte urbana, um templo com o seu telhado em pagoda e três senhoras em sari na conversa; em frente a uma stupa, um café de autor e ao lado do café um vendedor de rua de chai. Ao mesmo tempo que a tradição Newar e os festivais tradicionais – como o Rato Macchindranath – têm o seu expoente máximo de celebração , a cidade faz jus à sua alma artística na modernidade. É aqui que se realizam grande parte dos festivais de artes modernas do Nepal, como o Photo Kathmandu ou Jazzmandu.

photo exhibition Patan

Dos três antigos reinos, Bakhtapur é o único onde ainda se consegue vislumbrar o que seriam as cidades rodeadas de campo. A explosão de construção desregulada de Kathmandu já se estendeu até aqui, mas caminhando pela cidade ainda encontramos hortas e campos semeados.

Ao contrário de Patan e Kathmandu, os seus edifícios históricos não se limitam à Durbar Square. Distribuem-se por várias praças, o que faz dela o maior e mais monumental complexo das três.

Fora do roteiro turístico das praças históricas, e como quase toda a zona da cidade em torno destas está fechada ao trânsito, a vida parece seguir como há séculos. Na sua temporada, vêm-se entradas e pátios cobertos de trigo e millet a secar ao sol. Em pequenos cruzamentos há poços comuns de onde se retira água com baldes e cordas. De manhã cedo, pequenos mercados de vegetais ladeiam as ruas e caminhando pelas ruelas mais tarde deparamo-nos com homens a jogar às cartas nos passeios e mulheres sentadas nos beirais das portas à conversa. De vez em quando topamos com alguém a tomar banho de balde e as galinhas circulam livremente por todo o lado. 

Bakhtapur

Nas ruas principais o circo turístico mistura-se com as tradições. Os guardiões dos templos procedem aos rituais enquanto as máquinas fotográficas disparam para todo o lado. Na praça de Taumadhi, por exemplo, locais e estrangeiro sobem os degraus do imenso Nyatapola – templo de Lakshmi e o maior pagode do país. Apesar da sua altura, foi um dos poupados ao terramoto e é um exemplo ímpar da arquitectura Newar. Cinco andares construídos em pedra, na base, com uma escadaria guardada por estátuas de elefantes, leões, lutadores e deusas tântricas, dois por cada nível, e no cimo disto, o templo em si, um pagode de cinco telhados em tijolo e madeira talhada.

As lojas de lembranças e artesanato ocupam as ruas, umas a seguir às outras, intercaladas por restaurantes e cafés que oferecem os mesmos menus, a preços inflacionados. Na Pottery Square o chão está quase sempre coberto de jarros e vasos em cerâmica crua, a secar ao sol. Em pequenos telheiros, homens rodam as rodas de oleiro transformando rápida e precisamente montes cinzentos disformes em vasilhas e tacinhas.

Homens, mulheres e adolescentes, de cócoras ou de rabo para o ar, vão-os virando e transportando para o meio da praça. Nas traseiras desta, dois fornos recém construídos cozem as peças. Tradicionalmente, esta cozedura era feita debaixo de cinzas e brasas e este método ainda é usado por quem não pode ou não quer esperar que os fornos estejam livres. Apesar de também servir de atracção turística, ainda é aqui que muitos dos utensílios usados pelas famílias nepalesas são feitos e o conhecimento é passado de geração em geração. É comum ver-se um pai a ensinar o filho pequeno a trabalhar o barro e vários membros da mesma família a empilhar ou retirar as peças do forno.

It’s only Rock’n’Roll but I like it

O bairro de Thamel é um gueto turístico. Porta sim, porta também seguem-se lojas de material de montanhismo contrafeito, artesanato, discos com mantras musicados, roupa a puxar ao lado hippie moderno, mochilas de cânhamo e pele, restaurantes, hotéis e bares. Ninguém vive aqui. É um circo com bandeiras de oração. Mas é um circo onde os Nepaleses também se vêm divertir.

Thamel

Quase todos os bares têm música ao vivo. E quase todos tocam covers de bandas rock americanas e inglesas dos anos 70 e 80. Mesmo os originais Nepaleses actuais soam a bandas rock dos anos 70 e 80. Entrando num destes bares a um sábado à noite, cruzamo-nos mais com nepaleses a abanar a cabeça, quando não o corpo todo, do que com os estrangeiros que ocupam as ruas durante o dia.

A abertura do país nos anos 50 trouxe dinheiro e pessoas. A mudança de um sistema de trocas para o monetário estava já em curso e a abertura ao dinheiro externo trazido pelas organizações internacionais, burocratas e turistas, bem como a criação de postos de trabalho assalariados criou uma classe média que nunca tinha existido.

Os primeiros turistas ocidentais que chegaram a Kathmandu vinham imbuídos do espírito hippie dos anos 60. Chegavam, muitos depois de meses na Índia, em busca do exótico e espiritual de um mundo que tinha estado fechado e das drogas, que eram então legais e baratas. Ocupavam as pensões e cafés da apelidada, em sua honra, Freak Street, ao lado da Durbar Square de Kathmandu, e provocavam um misto de choque e admiração nos locais. Passavam meses na cidade, em trajes fluídos e reveladores, flutuando num estupor entre festas de rock psicadélico, círculos de chillums e discussões (mais ou menos) filosófico/espirituais.

Com a penalização das drogas, em 75, e uma mudança de atitude dos próprios nepaleses face ao turismo, começaram a chegar outro tipo de pessoas. Banalizou-se o montanhismo, tirando proveito da proximidade dos Himalaias, e criaram-se infraestruturas para receber um tipo de turista mais aventureiro, com mais dinheiro e com menos tempo. Foi nesta altura que Thamel começou a ser construído e a Freak Street entrou em declínio. Hoje em dia, distinguem-se pouco um do outro. Os mesmos tipos de restaurantes e bares, lojas de artesanato e o ocasional rapaz a oferecer haxixe entre dentes enquanto finge passear na rua.

Há quem diga que os hippies desapareceram, há quem diga que nunca se foram embora. Com a abundância de túnicas e calças de aladino no vestuário dos viajantes em geral, é difícil separar o hábito do monge, o espírito do aspecto – talvez isso seja também verdade para o que é a Kathmandu dos turistas de hoje.

Mas há um legado indiscutível dos “freaks” dos anos 60 e 70. Esta paixão pela música. Principalmente pelo rock. Os miúdos nepaleses daquela recém-criada classe média (com tempo e dinheiro para gastar) apaixonaram-se  pelas guitarras de Frank Zappa e dos Pink Floyd e a sua influência vem sido passada de geração em geração.

Claro que outros ritmos se infiltraram entretanto. Principalmente em lugares que pretendem chamar aqueles viajantes mais novos à procura das referências que ouvem em todos os lugares do mundo. Sim, também se ouve o “Despacito” por Thamel, mas ao fim da noite, numa grande maioria dos bares, ainda é por esses clássicos e pelos êxitos rock locais tocados ao vivo que as vozes se levantam mais alto.

Do sono da Idade Média, às luzes de néon da modernidade

Voltar ao centro de Kathmandu, depois de Bakhtapur parece uma viagem ao futuro.  A história do Nepal, e consequentemente – talvez até principalmente – de Kathmandu, é uma história de mitos, desigualdades, intrigas e repetição. Depois da reintrodução dos poderes do rei em 1951 e com promessas de um sistema parlamentar multipartidário sucessivamente adiadas foram-se intercalando movimentos populares, revoluções, golpes e ditaduras monárquicas, jogadas na capital e sempre em favor das elites e dos grandes senhores das terras. A capital manteve-se (e mantém-se) alheada do resto do país, mesmo que as desigualdades ocorram até dentro dela.

Foi este clima de revolta que estimulou e alimentou a insurgência Maoísta de meados dos anos 90 até 2005, e que antecedeu a capitulação da monarquia e instituição de uma república federal. Ao longo de décadas a cidade foi crescendo descontroladamente, a ajuda ao desenvolvimento foi chegando e falhando nos seus objectivos, a corrupção manteve-se e os valores sociais e comunitários foram sendo degradados. Apesar de toda a cooperação internacional e de sucessivos planos directores de desenvolvimento, Kathmandu é ainda hoje uma capital sem água canalizada, com cortes de energia diários, sem sistema sanitário e com um dos maiores índices de poluição do mundo. Ao mesmo tempo que o preço dos terrenos não para de aumentar, centros comerciais, condomínios fechados e lojas de luxo continuam a abrir pela cidade, proliferam bairros de lata para acomodar o êxodo rural e constroem-se anexos em cima de edifícios antigos já prestes a ruir. Centenas de famílias evacuadas das montanhas para a cidade depois do terremoto de 2015 continuam a dormir em acampamentos, quando não são expulsas desses terrenos, sem lugar para onde ir, porque o mesmo foi vendido para um novo projecto imobiliário.

O problema é complexo, como o é a identidade de um lugar composto por tantas etnias diferentes e cuja história vem sendo reescrita ao sabor dos interesses de uns quantos.

Nas palavras de KP Malla, que escreveu “Os intelectuais na sociedade nepalesa”, em 1973, “Eles acordaram um dia do sono da Idade Média, para se encontrarem expostos às luzes de néon de uma idade electrónica”. O sentimento hoje é ainda este. O tempo contraiu e andou para a frente. Saltaram-se séculos em dezenas de anos e a cidade luta para encaixar todas as suas dimensões num espaço cada vez mais reduzido. É, apesar de todas as incongruências e dificuldades, um emaranhado fascinante.

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