Key West: Livros, Amigos e um Poema

Comecei este post com a ideia apenas de acrescentar mais um capítulo à série de textos sobre os livros associados a lugares. Mas os meus livros de Key West são, na verdade, os meus livros em Key West (os que li por lá, mais que livros sobre o lugar) e um poema que escrevi, inspirada em frases inscritas nos seus passeios.

Esses livros e esse poema dizem também algo sobre as duas semanas que passei nessa ilha-cidade, que é o ponto mais a sul dos Estados Unidos, a apenas 90 milhas náuticas de Cuba. Este texto acabou por se transformar também na história dessa visita.

Fora visitar a minha amiga Reda para passarmos o nosso aniversário juntas e aquele lugar, ao mesmo tempo tão comercial e alternativo, tão americano e tão do mundo, acabou por surpreender-me mais do que esperava. Ajudou, seguramente, que estivesse como observadora e “vivedora” da vida de quem por lá faz o seu dia-a-dia. Sim, passei horas estendida na praia ou na varanda de volta desses livros e a ver os pelicanos passar, mas os meus fins de tarde e os seus dias de folga foram passados com a Reda e os seus amigos.

Foram tardes e noites de conversas, refeições, vinho e visitas a livrarias. Visitámos os “must-sees“ que faziam sentido, mas, principalmente, celebrámos e celebrámo-nos, porque celebrar parece ser a palavra de ordem em Key West. 

Celebrámos o nosso aniversário num dia inteiro no barco e na água, em torno das várias ilhotas e bancos de areia ao largo da ilha, e no Better Than Sex, um restaurante que só abria às dez da noite e só servia sobremesas decadentes emparelhadas com copos de vinho debruados a chocolate. Celebrámos o aniversário de outra amiga ao almoço, numa praia onde todos os domingos um senhor de cabelos brancos se passeia todo nu, com asas de tule cor-de-rosa, saudando alegremente quem por ele passa. Com o meio mundo que lá se reúne diariamente, celebrámos o pôr-do-sol em diferentes tons de rosa no pontão da Mallory Square.

Celebrámos a música de uma banda de amigos no Green Parrot. Celebrámos a diversidade e a diversão puras num espectáculo de drag no Bourbon St. Pub e numa sessão animada do The Rocky Horror Picture Show no cinema Tropic.

Toda a gente se vestiu dos personagens, gritou as frases mais conhecidas durante o filme (que tinha um MC a dar o mote) e fez-se um concurso de máscaras no final.

As “atracções imperdíveis” foram aquelas a que a Reda me levou sem que eu fizesse ideia do que dizem os guias turísticos. Reparo agora que tocámos em algumas dessas listas. Os que coincidem com o que ela, como residente, achou interessante ou que fazem parte da sua vida diária. Confesso que não pesquisei nada e que isso me deu muito prazer. Deixei-me levar.

A primeira surpresa surgiu logo na viagem entre Miami, onde ela me foi buscar, e Key West. 184 km de autoestrada e pontes, a unirem 44 ilhas. A Overseas Highway onde parecemos flutuar sobre o azul intenso do mar.

Já em Key West, percorremos as salas do museu Fort East Martello, de onde me lembro principalmente da exposição de enormes esculturas em ferro de Stanley Papio e da sala do boneco Robert, que assombra Key West há mais de 100 anos.

Tirei a foto da praxe junto ao marco do Southernmost Point, mas comovi-me mais com as placas adjacentes no chão: “One Human Family”.

Passámos uma tarde a ler à sombra das árvores da praia do Fort Zachary Taylor State Park, entre mergulhos; fizemos uma aula de yoga em cima de uma prancha de Stand Up Paddle no meio dos manguezais; caminhámos pelo cemitério com algumas das lápides mais originais que já vi e provámos diferentes runs no Rum Bar, onde trabalhava o seu amigo Geno. 

Fort Zachary Taylor State Park

Uma das visitas incontornáveis foi a casa/museu do Hemingway. Junto às dezenas de gatos com seis dedos, que povoam a casona colonial onde o escritor viveu com a sua segunda mulher, percebi que aquele espírito do “tudo ser possível se não nos perdermos pelo caminho”, que ainda hoje se sente, foi o que o levou também a mudar-se para lá, escrevendo grande parte da sua obra no estúdio daquela casa. Um dos livros inspirados em Key West que deixei na minha lista para ler é o seu To Have and Have Not.

Hemingway House and Museum. Foto de Faungg

A pequena ilha foi ocupada pelos espanhóis no século XVI, sendo usada como base para pesca. Foi depois vendida a um empresário do Alabama, no início do século XIX. Na década de 1830, Key West era a cidade per capita mais rica do país. Inicialmente, os ilhéus ganhavam dinheiro resgatando cargas de navios que haviam naufragado nos recifes. Mais tarde, Key West tornou-se uma grande estação de carvão e porto de navegação. Muitos cubanos, que haviam deixado o seu país fugindo do domínio espanhol, trabalhavam na maioria em fábricas de charutos, até 1886. Durante a Guerra Civil, Key West foi a única cidade do sul a permanecer nas mãos da União e manteve a sua prosperidade até à Grande Depressão, que levou à ruína e abandono de muita da sua população. Com a construção da Overseas Highway e o desenvolvimento do turismo, retomou alguma da antiga prosperidade, perdendo parte do antigo encanto tropical relaxado que encantara Hemingway e a sua trupe. 

Os naturais de Key West intitulam-se conchs (conchas) e os estrangeiros que lá residem mais de sete anos são “conchas de água doce” (fresh water conchs). A sensação com que fiquei foi que havia mais de água doce que naturais. Toda a gente que conheci vinha de outro lugar, à procura de algo que eles próprios não conseguiam bem identificar, mas encontraram ali, entre o azul impossível do mar das Caraíbas, as vivendas brancas e condomínios de reformados, os galos protegidos que atravessam as ruas e se penduram nas vedações das casas, o verde dos manguezais, o peixe e marisco apanhados pelo amigo com barco que toda a gente tem.

De alguma maneira, desde a sua origem, a ilha continua a atrair renegados e empresários, românticos e cépticos, turistas superficiais e escritores filosóficos, artistas, loucos, desportistas e toda a panóplia de gente que, sazonal ou permanentemente, (quase) sem querer ali acaba. Há quem venha à procura de trabalho, há quem venha pelo espírito livre que se vive, há quem venha porque tem amigos ou família, há quem venha sem saber por quê.

Foram tantos os personagens. Recordo três. Num bar de vinhos, sentadas ao balcão, ouvimos Mark de Nova Iorque, 50 anos, cabelo negro comprido e braços cobertos de tatuagens, desabafar que o mundo o deixava furioso, que Metallica eram verdadeiros e davam-lhe um escape para essa raiva. No segundo seguinte estava a servir-nos e a descrever vinhos e queijos deliciosos com a voz mais doce, não nos deixando pagar os dois últimos copos que pedimos. Uma noite já avançada fomos até à festa de aniversário de um artista local, a convite de amigos comuns. Num jardim iluminado por velas, gente de todas as idades conversava à volta de uma fogueira e dançava, em estados de intoxicação variados. David Wegman, 70 anos, de Indiana mas em Key West havia décadas, cantor, pintor, artista no geral, sentou-nos no seu estúdio num barracão atrás da casa, com um tecto baixo feito de lençóis e uma cama onde disse pintar, e mostrou-nos o seu trabalho. Pinturas, impressões, gravações, esculturas e estampagens em t-shirts que, reparei depois, se vendiam pela ilha. O Tom, 50 anos, rastas pretas enormes. Trabalhava numa oficina e loja de aluguer de bicicletas. Desmanchou-se a rir quando cheguei com a velha e enferrujada bicicleta da Reda, demasiado pequena para o meu tamanho, mas que me deu tantos momentos de alegria.

Encheu-a de WD40 a ver se chiava menos, e passámos o resto da tarde na conversa. Já não sei de onde era, mas acostara ali havia cinco anos, para arranjar o veleiro onde vivia. Antes disso, velejara no Caribe vários anos e ia só fazer uma paragem técnica. Só que foi ficando. “Hei-de ir embora, mas por enquanto, estou por aqui. Nem sei bem porquê, este é um sítio estranho, mas por enquanto, está tudo bem. Tenho amigos, trabalho aqui, jogo bocci ao fim do dia ao pé da praia, gozo com os turistas dos cruzeiros que decidem alugar bicicletas sem saber andar bem. Está-se bem.”

Estes encontros e experiências verteram-se para o poema que escrevi no regresso a casa. Uso-o para fechar este texto, que parece ficar em aberto, porque sinto em aberta também a minha opinião sobre Key West. Recomendo a visita? Não sei. Gostei de lá estar? Muito. Suponho que, como tudo, dependerá do objectivo da viagem e da maneira como é vivida.

(Escrevi-o originalmente em inglês e é em inglês que acho que funciona melhor, mas deixo-vos também a tradução):

Words on the pavement   

speak of falling dresses,

blues and reds and sunset purples,

footsteps on sand,

freedom and change and 

death.

I roll on

a rusty bike

made of love and stories.

The girl again has chosen here,

and here’s a place

that’s seen it all.

A place of artists

that were, and artists

to be.

Of waiters of life

and ones here to see.

Of lost hopes and

won dreams,

six fingered cats,

redemption and sins.

Here, iguanas cross the street

followed by cocks and chicks

and a man with pink wings

walks on the beach.

Here, salt water

washes away tears.

Men are wrinkled from the sun

but preserved from their years.

Pirates and drag queens

share whisky glasses

and a gentle sailman with

dark dreadlocks

offers beers

on bike shops.

I roll on 

a rusty bike 

made of love and stories.

Wood and rust. White

picket fences.

Ghosts.

Laughter.

Oysters.

Words.

Hugs.

Drops of sweat on my

upper lip

catch the fishy smell 

of seaweed.

I am never dry or

fresh

but for in a pool with

a champagne glass.

A white bearded artist

carves mermaids on a backyard

shack, candle lit and surrounded by

trees.

A long haired metalhead

talks of cheese as if

describing a woman

and professes his love of

Metallica and italian wine.

Bras and dollar bills hang

from the ceiling

where it smells of stale beer

at noon.

Here, they came to start anew.

Here, they came to be set free.

Here, they heal then wait and see.

I roll on

a rusty bike

made of love and stories.

Palavras no pavimento

aludem a vestidos caídos,

azuis, vermelhos e roxos pôr-do-sol,

pegadas na areia,

liberdade, mudança e

morte.

Circulo

numa bicicleta ferrugenta

feita de amor e histórias.

A rapariga, outra vez, escolheu o aqui,

e aqui é um lugar

que já viu de tudo.

Um lugar de artistas

que foram, e artistas

por ser.

De empregados da vida

e dos que pagam para ver.

De esperanças perdidas,

sonhos ganhos,

gatos de seis dedos,

redenção e pecados.

Aqui, iguanas atravessam a estrada,

seguidas de galos e galinhas.

Um homem com asas cor-de-rosa

passeia na praia.

Aqui, as lágrimas lavam-se

com água do mar.

Homens estão enrugados do sol,

mas preservados da sua idade.

Piratas e drag queens

partilham copos de whisky

e um marinheiro gentil

com rastas negras

oferece cervejas

numa loja de bicicletas.

Circulo

numa bicicleta ferrugenta

feita de amor e histórias.

Madeira e ferrugem.

Sebes brancas.

Fantasmas.

Risos.

Ostras.

Palavras.

Abraços.

Gotas de suor

no labio superior

apanham o odor a mar

das algas.

Nunca estou seca

ou fresca,

exepto de copo na mão

numa piscina.

Um artista de barba branca

esculpe sereias num barracão

à luz das velas,

rodeado de árvores.

Um metaleiro de cabelo comprido

fala de queijo francês como

se descrevesse uma mulher

e professa o seu amor

a Metallica

e vinho italiano.

Soutiens e notas de dólar balançam,

pendurados no tecto,

onde cheira a cerveja velha

ao meio dia.

Aqui, vieram para recomeçar.

Aqui, vieram para se libertar.

Aqui, redimem-se e esperam para ver.

Circulo

numa bicicleta ferrugenta

feita de amor e histórias.


Os livros que me acompanharam nessas semanas foram, então:

All the Light we Cannot see

O romance de Anthony Doerr segue a vida de uma rapariga francesa cega e um rapaz alemão cujos caminhos colidem na França ocupada, enquanto ambos tentam sobreviver à devastação da Segunda Guerra Mundial.

Peguei neste livro da estante da Reda e não consegui parar de o ler. Não apenas pela história e como é escrita — em capítulos curtos, que vão e voltam no tempo — mas porque as imagens e metáforas são brilhantes. Eu conseguia sentir o que Marie-Laure estava a sentir, sem ver, e sentia-me no meio da ação. O livro é real e triste, sem nunca ser lamechas ou melodramático. Coloca questões sobre quanto controle temos sobre as nossas vidas, como fazemos escolhas impossíveis em situações impossíveis e o poder da redenção.

É simplesmente uma escrita linda com uma boa história, e não encontrava um livro com ambos havia algum tempo. Passei horas mergulhada naquelas páginas no fresco da sombra da varanda e estendida na praia, enquanto a Reda trabalhava.

Sisters of the Earth

Comprei este livro numa livraria na mesma rua do cinema, de uma pilha de livros em segunda mão. É uma antologia de textos sobre natureza, em diferentes formatos, todos escritos por mulheres. Fui lendo só alguns, de vez em quando, estendida na praia ou nas tardes de varanda à sombra. 

Por ser uma coleção de escritoras diferentes, é muito heterogénea: algumas crónicas são lindas, outras são apenas chatas. Tendo em conta que eu também não consegui terminar o Walden, acho que longas descrições de paisagens naturais simplesmente não são o que me estimula a leitura. Mas adorei os poemas e senti que precisava ler “A Natural History of the Senses”, de Diane Ackerman, após ler a sua descrição de um pôr do sol, onde ela seguiu com este trecho:

“When you consider something like death (…) then it probably doesn’t matter if we try too hard, are awkward sometimes, care for one another too deeply, are excessively curious about nature, are too open to experience, enjoy a non stop of the senses in an effort to know life intimately and lovingly. It probably doesn’t matter if, while trying to be modest and eager watchers of life’s many spectacles, we sometimes look clumsy or get dirty, or ask stupid questions or reveal our ignorance or say the wrong thing or light up with wonder like the children we all are.”

Travels with Charley

Andava à procura deste livro há anos, e a Reda ofereceu-mo no nosso aniversário conjunto. Tornou-se um dos meus favoritos. Pela escrita simples e polida, que consegue ser doce e bem-humorada sem perder qualidade. 

“I tossed about until Charley grew angry with me and told me “Ftt” several times. But Charley doesn’t have our problems. He doesn’t belong to a species clever enough to split the atom but not clever enough to live in peace with itself.”

Pela forma como transmite a beleza e as dificuldades de viajar sozinho. Pelas reflexões sobre globalização, progresso, racismo, as pressões do turismo, como percebemos os lugares e as nossas relações com a natureza e os animais.

“I discovered long ago in collecting and classifying marine animals that what I found was closely intermeshed with how I felt at the moment. External reality has a way of being not so external at all.”

Não posso falar sobre a América que Steinbeck foi descobrir, quando partiu na sua camioneta convertida com Charley, o seu cão. Não faço ideia se as diferenças que ele encontrou entre os seus ideais e a realidade, nos anos 60, ainda são relevantes ou não, e não foi isso que achei atraente neste livro. Os seus pensamentos sobre ideias mais gerais eram, e ainda me parecem, oportunos. E estar a lê-lo na América dele pareceu-me uma coincidência feliz.


Melhor altura para visitar Key West:

Fala-se muito das temporadas em Key West. As minhas impressões seriam seguramente menos benevolentes se tivesse apanhado as multidões dos cruzeiros e os veraneantes de época alta que os meus amigos, cujo trabalho dependia deles, tanto se queixavam. O Maio da minha visita é, aparentemente, uma das melhores alturas. O calor e humidade não estão no seu pico (mas eram bastantes ainda assim), há movimento, mas não enchentes e o risco de furacões é mínimo. É a temporada média que se estende de Março a Maio. Nas  palavras de toda a gente, e até das palavras no pavimento que me inspiraram “Shoulder season is the best!” Antes disso, no Inverno de Dezembro a Fevereiro, é a temporada alta, em que os preços e as multidões estão no seu máximo. É também nessa altura que há mais festivais. Com a chegada do Verão, o calor vai aumentando e o risco de temporais também. Muitos negócios fecham e os locais aproveitam (ou são forçados) a tirar férias ou ir trabalhar para outras zonas. 

Leave a comment