Sentada à borda do Ganges, pés quase na água, quase a tocar o rasto dourado do reflexo do nascer do sol, deixo-me inundar pela paz que se tem insinuado nos últimos dias. Flutuo leve como a névoa que se vai levantando à medida que o ar aquece.
Espelho e plano dos deuses, como me disse Jhuma na sua varanda. Aqui vemo-nos, entendamos esse reflexo ou não.
Hoje é a minha última manhã. Há dois dias que voltei a estar sozinha nesta viagem. Sozinha mas não só, como tenho sentido sempre. Caminhei até um dos ghat mais tranquilos e aí me sentei. Ouviam-se apenas os pássaros, algumas vozes esporádicas e o ocasional motor de um barco. Tudo brilhava em dourado sol e azul névoa, o Ganges era um espelho. Há minha esquerda, apenas um senhor nas abluções matinais. Se olhasse em frente, estava só eu e o rio. Afinal consegue-se estar sozinho na Índia.
Como é que se explica que esta sensação de paz e tranquilidade aconteça num lugar onde tudo é público? Onde, num mesmo olhar se contempla um rio a brilhar, barcos que deslizam como se sobre mercúrio, búfalos com cornos torcidos, vacas que espreitam a uma esquina, cabras que dormem cobertas por mantas de serapilheira, corpos humanos a arder, crianças a lançar papagaios, babas de pernas cruzadas, vendedores de chai a fumegar, gente a tomar banho, gente a dormir, um barbeiro a cortar o cabelo a um cliente sentado na escada, outro a aparar os pelos da barba, adolescentes a jogar cricket, homens a fazer massagens a outros homens, roupa a ser batida contra pedras, e estendida pelos degraus. Onde em dois minutos pode cheirar a flores, a fritos, a fumo, a esgoto, a urina, a canela, a masala, a fezes, a caramelo.
Se calhar não se explica. Sente-se. Sente-se esta alegria tranquila, esta gratidão. Sorri-se para dentro e por fora, quase se chora de felicidade.
Começa a música do templo. O som repetitivo, tribal, dos tambores. Os sinos. Quase um transe. O tempo passa sem que dê por ele. Quando me levanto já o sol vai alto. Há uma mala para fazer, há trabalho para terminar, mas há a certeza que volto. Então, faço-me ao caminho com o mesmo sorriso.
Até já, Varanasi.