2020 foi um ano esquisito

Como é que se escreve sobre 2020? Vou lendo por aí os extremos opostos de um ano que foi, acho que concordamos todos, atípico. E não me identifico com nenhum. Não posso, em consciência, estar agradecida “pelas lições”, porque para demasiada gente essas lições foram sentenças de morte, desgraças financeiras, trabalho e sonhos de uma vida destruídos ou moribundos. Mas também não posso dizer que foi o pior ano da minha vida, que foi tudo horrível, que estou desejosa que acabe. Não ponho assim tanto peso na passagem do 31 de 2020 para o 1 de 2021. O mundo não vai mudar à meia noite, qual Cinderela embruxada, e é bem possível que o sapatinho de cristal deixado para trás nos encontre outra vez no novo ano. Mas reflectir e fazer balanços é sempre útil e esta é uma data tão boa como outra qualquer para o fazer.

2020 foi um ano esquisito. É o único que consigo afirmar. 

Tive a sorte de o começar em grande e ainda ter passado quase três meses na Índia, com um salto no Nepal, onde o caos mundial gerado pelo bicho me alcançou. Quase me deixava lá presa. E consegui encaixar muita coisa nesses três meses. Tirei um curso de instrutora de yoga, vi o nascer e o pôr do sol todos os dias durante 1 mês, fui conhecer zonas que ainda não conhecia e revisitar outras com o Borja e liderei um grupo com muito boa onda, sem grandes percalços. 

Depois da aventura que foi conseguir voltar, pude ficar isolada sem ter de ficar fechada e isso foi um privilégio tremendo. Num Algarve às moscas, depois dos 15 dias de quarentena estricta, passei dois meses de manhãs no quintal e tardes a passear à beira-ria ou na praia. Foram uma benção que, às vezes, não sabia bem como agradecer.

Andei a vasculhar nos meus cadernos a ver o que tinha escrito e encontrei muito pouco, porque escrevi muito pouco. Tenho três ou quatro textos confusos, que oscilam entre a estagnação, a gratidão, o medo, a culpa e a incerteza. Acima de tudo, a incerteza. 

Em Abril, escrevi ”Isto é um privilégio, tenho bem noção disso. Tenho muitos momentos de dúvidas e apreensão. Não sei quando poderei voltar a trabalhar em viagens e nem para mim tenho escrito… não que faça algum dinheiro com isso. Mas acho que os últimos anos me prepararam para isto. O despojamento, a falta de despesas fixas e a sorte de ter esta rede de segurança dão-me alguma margem de manobra para tranquilidade. Passei a manhã a ler ao sol e agora cheira ao churrasco que meu pai está a fazer. Parecem férias. Às vezes é difícil não nos sentirmos culpados, mas a culpa não resolve nada. A minha situação de hoje é resultado de alguma sorte, mas principalmente das escolhas que fui fazendo ao longo da vida. E que me permitem sentir em paz no meio da pandemia”

Em Maio, no dia do nosso aniversário comum, escrevi à Reda “Estou perto da praia e hoje, pela primeira vez desde os quatro anos que nos conhecemos e prometemos fazê-lo no dia do nosso aniversário, dei um mergulho nua. Foi o momento perfeito. Para baptizar este ano estranho e insatisfatório. Para trazer alguma profundidade a semanas demasiado brandas, de uma calma esquisita – que aprecio, apesar de tudo – no meio do caos do mundo.”

Aos dois meses de termos voltado, reflectia sobre o efeito do vírus e das medidas adoptadas, na sociedade. Revoltava-me para dentro com negacionistas, peritos do facebook e histéricos das “liberdades” enquanto assumia o quanto toda a situação tinha posto a nu a imperfeição da condição humana e a estruturação das sociedades. Escrevi “Gostava de acreditar que esta pausa e a realização do que é verdadeiramente essencial vão trazer mudanças reais nas sociedades. Mas tenho sérias dúvidas.” 

No meio da calma, tinha momentos de pânico, em que sentia que devia estar a fazer algo mais, a preparar alternativas, mas passavam os dias e não fazia mais nada. Ou achava que não, mas as ideias iam aparecendo. 

Surgiu nesses dias a ideia, que andava há anos a germinar, de fazer as Viagens de Dentro para Fora. Ainda consegui fazer a primeira em Setembro, antes de tudo enlouquecer outra vez ( e estão já lançadas as primeiras de 2021). 

Inscrevi-me na Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, o que também já me andava a rondar o pensamento há uns meses. Daí saiu a participação na iniciativa #euficoemportugal, e o ânimo que me deu organizar essa viagem, realizá-la e escrever os artigos depois foi um sopro de alegria e actividade para o resto do Verão. E estou segura que mais projectos sairão daqui.

O Outono e princípio de Inverno voltaram a ser de algum isolamento, mais uma vez arejado. Os projectos e viagens continuaram todos em stand-by, mas saí de Lisboa e vim para Colares, onde tenho espaço e mato à porta. Deu para caminhadas e saídas de bicicleta todos os dias que quiz. Deu para planear e lançar outra das Viagens de Dentro para Fora, de que me orgulho muito. Deu para escrever um pouco mais e continuar a devorar livros. E deu para poder estar com a família, o que, neste ano, é dizer muito.

Não fiz nada do que tinha pensado, mas fiz muito de que me orgulho. Fui, talvez, mais procrastinadora do que quereria à partida. Mas em circunstâncias tão atípicas, poder deixar amadurecer as ideias, não ser demasiado dura comigo, foi também um luxo. Continuo a escrever menos do que acho que devia. Tenho cadernos de notas empilhados e um ficheiro com ideias para um livro, para o qual fiz muito menos do que achei que faria. Tenho muitas saudades de viajar, de me sentir fora de pé, de ir à descoberta e de dar a conhecer aos outros. Mas não posso, em consciência, dizer que este foi o pior ano da minha vida. 

Foi esquisito, foi duro, foi bipolar. Mas também foi um ano de muita reflexão e amor. De aprendizagens e natureza. Não sei bem o que sinto enquanto ele acaba. Provavelmente o mesmo que vou sentir amanhã. Mas aceito sempre qualquer desculpa para celebrar a vida, por isso vou comer as passas e beber o espumante como meio mundo. 

Bom ano!

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