Passeios de Inverno na Galiza

Eu achava que não gostava de frio, mas há qualquer coisa mágica no som das botas abafado pela terra e folhas húmidas, o verde brilhante das folhas e musgos cobertos de orvalho gelado, o som dos rios que só correm com esta força no Inverno e enchem as albufeiras de reflexos espelhados. Há um recolher interior que, paradoxalmente, consegue expressão neste exterior dos passeios pelos bosques encantados da Galiza. E depois há aquele abraço silencioso dado pelas brumas etéreas que se formam e desprendem por cima dos rios e sobem, montanha acima, perseguindo o abrigo e atração das copas das árvores, demorando-se em recantos mais protegidos, passando por cima de clareiras. Fazem-nos jogar às escondidas com a luz e as cores vibrantes das folhas que formam tapetes castanhos no chão e os líquenes verdes que vestem os troncos das árvores despidas de folhas. As brumas que se confundem com a nossa respiração, calor interior condensado na expiração dos dias gelados, mostrando-nos que somos também esta natureza que nos rodeia.

Voltar regularmente à Galiza no Inverno tem tido em mim este efeito apaziguador com a meteorologia mais adversa. Munida da roupa certa, vou descobrindo a beleza tranquila dos dias mais curtos e das temperaturas mais baixas. Aqui ficam algumas das minhas visitas preferidas na Galiza invernal (que serão boas em qualquer estação).

Ourense

Sou suspeita, porque esta é a terra do Borja e a nossa base de cada vez que vamos à Galiza, mas acho que é a cidade perfeita para explorar o interior galego. Não muito grande, com um centro histórico interessante, fácil de caminhar e pejado de restaurantes e sítios para petiscar, atravessada pelo rio Minho e seus afluentes, com pontes e caminhos ribeirinhos vários, e com mais água termal quente por metro quadrado que qualquer outro lugar onde já estive. É animada sem ser turística, bonita sem ser presunçosa, e, ao fim do dia, podemos ir pôr o rabo de molho e relaxar as pernas das caminhadas por menos de 5€, com vista para o rio. Chamam-lhe a cidade da água, com razão.

Canhão do Sil

Foi o meu primeiro passeio na Galiza com o Borja e nunca esqueci as brumas agarradas à pedra, na manhã gelada. Andámos de carro, em estradas serpenteantes, de miradouro em miradouro, acompanhando e afastando-nos do rio em vistas cada vez mais dramáticas, até que o nevoeiro cobriu tudo e recolhemos ao quentinho da lareira de uma casa rural em Castro Caldelas.

Vimos paredes verticais, socalcos e ondas mais suaves, cobertas das vinhas da Ribeira Sacra. Vimos quintas e caminhos rurais, carvalhos, castanheiros, medronheiros e sobreiros em florestas mágicas. Voltámos com amigos, a descobrir trilhos de caminhada, e voltaremos, para o misto de enoturismo e turismo activo onde esta zona brilha.

Castro San Cibrao de Las

O castro em si é impressionante. Duas linhas de muralhas a delimitar uma área de 10 hectares, com vários conjuntos arqueológicos dos povoados que ali existiram entre o séc.II a.C. e o séc.II d.C. Mas, chegar ao topo do monte, com o sol a sair por cima das nuvens que tapavam o rio Minho, escondido no seu vale entre montanhas, sem ninguém à vista, tornou o momento ainda mais especial. A localização privilegiada, por razões defensivas, tornou-o um miradouro natural. A cor do amanhecer, as árvores a contraluz, as nuvens-onda e a erva brilhante de orvalho, fizeram uma memória inesquecível. 

castro san cibrao de las

O Minho

Sim, o rio, como lugar. Porque atravessa grande parte desse interior galego e é companhia constante, visão entre curvas da estrada, agarrador de nevoeiros, reflector de margens e montanhas. Porque tem uma rota com nome próprio que fizemos em parte num Inverno, e muitas mais que o acompanham e serviram de inspiração para o percorrer de bicicleta, até à foz (e mais um bocado). Porque é “o pai dos rios galegos” e é também, ao mesmo tempo, fronteira e elo de união entre a Galiza e Portugal

Pazos de Arenteiro

Pazos de Arenteiro é uma aldeia, que por si só já valia a visita. Classificada como Conjunto Histórico-Artistico (único no meio rural galego), orgulha-se de ter mais de 1000 anos de história documentada. As épocas áureas remontam aos séculos XII e XVI, às ordens religiosas que fundaram igrejas e dinamizaram a vida do lugar e ao comércio do vinho, cuja riqueza levou à construção dos vários paços senhoriais que lhe dão o nome.

No entanto, o melhor, para mim, são os caminhos que a ela chegam, ou dela saem. Pontes de pedra, um rio vibrante, casas de pedra camufladas pelo musgo verde. Estes trilhos fazem parte do Caminho Minhoto Ribeiro e do Caminho de Santiago da Geira e dos Arrieiros, para além de formarem pequenas rotas em torno do povoado. Foi uma destas que caminhámos. Cruzando a ruína recuperada da Ponte da Cruz sobre o Rio Avia, fomos pelo trilho, que acompanha o rio, da estrada em direcção à aldeia. De paço em paço, atravessámo-la depois, de volta ao carro, numa volta circular de 1 hora de espanto. 

Muxía

A primeira vez que estive em Muxía foi no fim do Verão, a terminar 140km de Caminho de Santiago. Voltei 3 anos depois, em pleno Inverno. Fiquei de novo no Bela Muxía, que é dos albergues mais giros do caminho e voltei a subir ao Monte do Corpiño, para ver as casinhas empoleiradas na costa que rodeia a aldeia-península. E voltarei, nas mesmas e noutras estações, a ver o mar a bater por trás do farol em frente ao santuário da Virgem da Barca, sentar-me na “pedra que abala”, a mergulhar na praia de Lourido depois de atravessar a duna, a fazer caminhos e O Caminho de novo.

farol de Muxia

Cabo Prior

Falésias que encimam uma costa agreste, vigiada por um farol e várias baterias militares abandonadas. Trilhos com urze até à cintura e túneis escuros que foram abrigo de homens e são agora refúgio de cabras, acabam em varandas com vista para as ondas e as rochas, sepulcro de muitos barcos.

São restos de humanidade que vão sendo tomados pela natureza. Cinzento sobre azul-mar de mil tons e verde erva. Vista para meias-luas de praias rodeadas de falésias que se sobrepõem na distância. Um pequeno parque de diversões para descobridores amadores de ruínas e caminhos.

A Coruña

A Coruña é terra de nostalgias e amizades. Foi onde o Borja estudou e onde vivem amigos. De todas as visitas, caminhamos por ruas que lhe são conhecidas, mas que redescobre nas mudanças sofridas ao longo dos anos, na cidade e na personalidade, que nos faz valorizar coisas diferentes em diferentes fases da vida. Para mim, também é cidade de água, mas água salgada. Praia de um lado, marina do outro, no pé do cogumelo que é o centro da cidade, a caminho da Torre de Hércules. É cidade de varandas-galeria de mil vidros debruados a branco, numa estética geométrica muito particular. Cidade de vento salgado, de sol que vira chuva enquanto piscamos os olhos, de horas passadas na conversa entre polvo, tapas e vinhos e de focas a dormir e nadar no aquário junto ao mar.

Praia das Catedrais

Era Janeiro de 2020, não foi preciso marcação nem havia enchentes, por comparação com as imagens que tenho visto dos últimos anos. Por sorte, porque a hora não foi planeada, aproveitámos a praia e os seus monumentos naturais na maré certa. Na maré alta, a praia desaparece debaixo de água e as grutas ficam inacessíveis. Atravessámos os famosos arcos de pedra, saltitando entre a areia, rochas e poças naturais. Brincámos com os reflexos da água e do sol, entrámos nas grutas e saímos quando a maré começou a subir, com o respeito que o mar que vem esculpindo estes colossos merece. 

Vixía Herbeira e San Andrés de Teixido

No mesmo dia da praia das catedrais, continuámos pela costa norte até Vixía Herbeira. No topo de umas das falésias mais altas da Europa, junto à casa de pedra do século XVIII, com as pernas penduradas no muro, vimos o sol baixar e a névoa começar a cobrir o mar. O verde mais verde pelo dourado da luz, o céu a ficar cor-de-rosa, as falésias em camadas sucessivas na distância a revelar o recortado da costa. Saímos mais cedo do que a luz pedia, para ainda poder ver San Andrés de Teixido nesse dia. Eram só três quilómetros. O povoado e igreja, carregados de histórias, revelou-se já no lusco-fusco. Como em tantos outros lugares, ficou a vontade e a promessa de voltar, a dois pés ou duas rodas, explorando com a calma que toda a zona merece. 

pôr do sol em Vixia Herbeira

Lugo

Gelo, muralha e tapas. -3ºC numa manhã de Janeiro. Os vidros do carro cobertos de gelo. Mas as tapas! Uma cerveja dá três de comida e desengane-se quem acha que são umas azeitoninhas. Fatias de tortilha, pratinhos de callos, favas e chouriços. Toda uma refeição gratuita, com dois copos de bebida. Antes, para abrir o apetite, percorremos toda a muralha que rodeia a cidade velha, património da humanidade pela UNESCO, observando de cima as ruas pedonais serpenteantes por onde se distribuem os muitos bares e restaurantes. No cair da noite e nessa manhã, o orvalho gelado. Gelo, muralha, e tapas. Zero fotos. Memórias boas.

O Courel

O Inverno nas cores do Outono. O chão, uma cama fofa de folhas douradas molhadas em terra mole, muitas árvores, o som do rio e encontros imediatos com vacas que nunca chegámos a perceber se eram amistosas ou não. Creio que tivemos mais medo nós que elas, mas nunca fiando, passámos de lado e de mansinho. Há muito que ver, mas já chegámos tarde. O Courel fica na junção das províncias de Lugo e Ourense com a comarca leonesa do Bierzo. Longe da cidade de Ourense, de onde vínhamos em modo passeio com muitas paragens intermédias. Explorámos pouco, mas ficou muita vontade de voltar a esta zona, considerada o grande pulmão da Galiza pela quantidade de soutos e florestas autóctones. 

Combarro 

Espigueiros e ria. Espigueiros quase dentro da ria. O cheiro forte a maresia, uma rua apertada, espigueiros (e ria) de um lado, restaurantes e lojas com meigas (bruxas) do outro. Tectos baixos, madeira e pedra. Há realmente algo de bruxaria por ali, mas se calhar são as minhas memórias a misturar-se com o filme fantástico/terror ali ambientado, Dagon.

Como em tantas outras viagens e passeios, cada visita deixa-nos com uma lista ainda maior de lugares onde voltar e explorar melhor. O potencial é enorme, a carga afectiva exponencia-o ainda mais. Gosto particularmente que a maioria deles não conste das listas de “Lugares a visitar na Galiza”, ou constando, que os tenha conhecido em épocas sem multidões. Mais uma razão para escolher o Inverno, pacificada que estou com o frio e (alguma) chuva. Este será um texto em evolução, acrescentado à medida que vá acrescentando lugares ao meu coração. 

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